dezembro 31, 2008

Discos: um top de banda larga

Deram entrada na discoteca cá de casa em 2008, em vinil ou CD, e andaram pelo ano fora em alta rotação. Também no que aos discos diz respeito, a preocupação com lançamentos recentes é quase nula. Insisto: a música não tem idade. Por isso, este "top" começa no século XVII e acaba no XXI. Para puristas de género, daqueles que só ouvem jazz, ou só ouvem clássica, ou só ouvem indie, ou só ouvem metal, ou seja, melómanos de banda estreita, este "top" de banda mais ou menos larga pode revelar-se altamente indigesto.

  • King Arthur, de Henry Purcell
  • Stabat Mater, de Giovanni Pergolesi
  • Bella Terra, de Arianna Savall
  • Strictly Genteel, de Frank Zappa
  • Flood, de Jocelyn Pook
  • Three Viennese Dancers e After the Requiem, de Gavin Bryars
  • Lux Aeterna, de Terje Rypdal
  • Comic Opera, de Robert Wyatt
  • In Praise of Dreams, Jan Garbarek
  • After the Poison, de Marianne Faithfull
  • Moanin', de Art Blakey
  • Somethin' Else, de Cannonball Adderley
  • Down to the Bone, de Sylvain Chauveau
  • Vrioon, de Alva Noto e Ryuichi Sakamoto
  • The Following Morning, de Eberhard Weber
  • Songs: The Art of the Trio, Vol. 3, de Brad Mehldau
  • Melos, de Vassilis Tsabropoulos
  • Electra, Arild Andersen
  • The Blue Notebooks, de Max Richter
  • Snow Borne Sorrow, de Nine Horses
  • Pale Ravine, de Deaf Center
  • Tuesday Wonderland, de Esbjörn Svensson Trio
















Esbjörn Svensson (1963-2008) Foto: Bernhard Ley

dezembro 30, 2008

Filmes: um top muito cá de casa

Porque o Travessias não é, felizmente, vítima da ditadura da actualidade cinéfila, os meus filmes favoritos de 2008 são intemporais. E vistos, ou revistos, em casa, pois nas salas de cinema há muito se perdeu o respeito pelo ritual sagrado de ver um filme.


dezembro 28, 2008

Livros: um top para quase ninguém

Os meus livros favoritos de 2008 não aparecem em nenhum dos tops que agora inundam a imprensa. Ainda assim, e partilhando com Moretti aquele gosto especial pela companhia das minorias, fica aqui um modesto contributo para a divulgação de obras que, normalmente, andam longe das luzes da ribalta do escaparate e nos antípodas dos equadores e dos segredos e dos mistérios e dos códices de tudo e mais alguma coisa:

dezembro 21, 2008

A pensar em Magritte

© Helder Bastos
Matosinhos, 2008

dezembro 17, 2008

Gavin Bryars dá cartas em Serralves

Há tempos, queixava-me aqui da pouca divulgação que o compositor e contrabaixista britânico Gavin Bryars tem em Portugal. Pois bem, agora que ele se prepara para actuar, com o seu Ensemble, no auditório do Museu de Serralves (depois de amanhã), esperemos que, pelo menos os jornais da cidade, não lhe passem ao lado.

A Rádio Universitária de Coimbra, essa, percebeu a relevância do espectáculo, intitulado A Man In A Room Gambling, e vai transmiti-lo em directo. Rádio de Coimbra, note-se.

O espectáculo partiu originalmente de uma encomenda da BBC Radio 3 e da Artangel. Foi concebido como programa de rádio e desenvolve-se a partir de uma sequência de textos sobre estratégias usadas em jogos de cartas, acompanhados por música. O programa inclui ainda The North Shore, obra memorial que Bryars dedicou a Juan Muñoz, cujos trabalhos em vários domínios, como a escultura, instalação e desenho, estão expostos, até Fevereiro, no Museu de Serralves.

No site da Tate Gallery, de Londres, pode ser ouvido um excerto de A Man In A Room Gambling.


A ler:
Gavin Bryars no Travessias

dezembro 07, 2008

Fragilidade no ser

«Para um ser humano, qualquer semelhante deve ter escrita na frente esta advertência: «Muito frágil; manejar com cuidado.» As normas desse manejo cuidadoso da fragilidade constituem precisamente aquilo a que chamamos «moral». E a premência destas acentua-se tanto mais quanto mais débil é o semelhante, devido à idade ou à condição, quanto mais frágil e visivelmente mortal se nos apresenta.»

Fernando Savater, A Vida Eterna

novembro 27, 2008

Fotograma: Monica Vitti

Giuliana (Monica Vitti) e os seus insondáveis estados de alma em chamas captados por Antonioni em Deserto Vermelho.

novembro 22, 2008

Sítios de Outono


É ímpar a beleza das cores de Outono. Os miúdos "Tokyo Hotel" passam em bando com as calças desfalecidas sobre os joelhos, atropelando o andar. As miúdas esganam o rabo na ganga e olham-se ao espelho no telemóvel, em contínuo movimento perpétuo pela rua fora. Mulheres com trote de macho latino praguejam à bruta. Os engravatados dos topos de gama cumprem religiosamente os seus rituais sagrados: abrem a porta das viaturas e cospem na estrada. O engraxador do Marquês está lá, no sítio de sempre, ao lado do quiosque com mulheres nuas na capa, à espera que o sapato lhe chegue à graxa. Parece uma fotografia. O homem das patilhas grandes e olhar perdido no horizonte sentado à mesa do Guarany também. Tem ar de quem perdeu alguém, há muito tempo. Quando não olhamos para trás, o mar da Foz é bom, como sempre. A cidade borra-se de graffiti e betão. As folhas caídas amparam-nos o caminho nos jardins. Na estação do metro, o tempo pára. Dava uma boa fotografia. E arranca. O último filme do Greenaway é a sua cara, mas falta qualquer coisa àquele Rembrandt. Espera-nos o Deserto Vermelho. É bom ouvir o Outono. O tempo não espera por ninguém. E ainda há tanto para ler, ver e ouvir... Como se chama mesmo aquele músico com nome esquisito? Deixa-me escrever. Vidna Obmana. O mundo é demasiado grande para nos darmos ao luxo de estarmos sempre no mesmo sítio.


Discover Vidna Obmana!

novembro 14, 2008

A escrita eterna de Savater

Regresso à escrita de um velho amigo. Amigo de horas sem fim a lê-lo. Com aquele prazer de quem, como dizia Borges, abre os livros em busca de sabedoria.

Em A Vida Eterna, Fernando Savater convida-nos a acompanhá-lo numa reflexão sobre a religião, a razão, a morte e a vida eterna. Vida eterna em que ele, como «modesto ateu» convicto, não acredita: «Estas reflexões incertas acerca da vida eterna são fraternalmente dedicadas a todos os que nela não acreditam».

O livro, naturalmente, "engata-nos" logo nas primeiras levas de leitura. Outra coisa não seria de esperar de uma obra que nos recebe com um excerto da Metafísica, de Alberto Caeiro:

«Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
da minha janela (mas ela não tem cortinas)...»

outubro 27, 2008

O Mac do Molvær avariou

O concerto de ontem à noite, na Casa da Música, não correu bem ao talentoso Nils Petter Molvær. O Macintosh de serviço resolveu estragar o arranque do espectáculo do trompetista norueguês, a quem faltou depois algum relaxamento na exploração das dinâmicas resultantes do cruzamento do trompete com as ambiências geradas pelo computador.

No entanto, não há que enganar: Molvær é um músico interessantíssimo, arrojado, sem medo de trazer para o jazz (mesmo contra algumas resistências da audiência que se sentiam no ar) aquela mistura mágica de nórdico com experimental, que normalmente deixa os cabelos em pé aos jazzistas mais "puristas", sobretudo aqueles para quem o jazz durou apenas até ao final da década de 60 do século passado.

Por onde começar a ouvir Nils Petter Molvær? Pelo seu primeiro álbum a solo, Khmer. Editado pela ECM, claro.

outubro 17, 2008

Videograma: as manhãs perdidas


Aqui vemos Guillaume Depardieu, falecido há dias, num filme inesquecível, mas triturado pelas regras implacáveis do mercado. Pelo menos por cá, perdeu-se por completo o rasto a Tous les Matins du Monde, de Alain Corneau, que em muito contribuiu para a redescoberta de Sainte-Colombe e de Marin Marais, mestres da viola de gamba do século XVII, um período riquíssimo e belo da história da música.

outubro 10, 2008

Beco de Passos Manuel

© Helder Bastos
Porto, 2008

setembro 28, 2008

Coisas da vida

Em O Significado das Coisas, A.C. Grayling escreve sobre um mundo imenso de assuntos a partir de um ponto de observação filosófico. E fá-lo de modo tão sucinto e bem escrito que ficamos sempre com a sensação de que cada texto sabe a pouco.

A maior parte dos temas tratados por este professor de filosofia (Universidade de Londres) e jornalista literário é eterna: moral, morte, medo, esperança, traição, derrota, amor, ódio, prudência, vingança, castigo, fé, etc..

Através da acumulação da leitura, percebemos que Grayling não tem a mais leve costela conservadora, moralizadora («O homem que moraliza é geralmente um hipócrita», já dizia Oscar Wilde) ou religiosa. Bem pelo contrário. Aliás, os textos em que o autor mostra mais claramente o que pensa, sem rodeios, são sobre religião:

«Mas a moral religiosa não é apenas irrelevante, é também antimoral. As grandes questões morais do nosso tempo dizem respeito aos direitos humanos, à guerra, à pobreza, às grandes diferenças entre ricos e pobres, ao facto de algures no terceiro mundo uma criança morrer em cada dois segundos e meio devido à fome ou a uma doença curável. As obsessões das igrejas acerca das relações sexuais anteiores ao casamento e da possibilidade ou não de os casais divorciados se poderem casar de novo surge como desprezível à luz desta montanha de sofrimento e carência humanos.»

«Mas a religião não é apenas antimoral: consegue frequentemente ser imoral. Noutros pontos do mundo há fundamentalistas e fanáticos religiosos a encarcerar mulheres, a mutilar órgãos genitais, a amputar mãos, a assassinar e a espalhar bombas e terror em nome das suas fés.»

Quando escreve sobre o ensino, Grayling tem algumas tiradas brilhantes. Lembrando, na esteira dos gregos antigos, que «só os cultos são livres», dá algumas alfinetadas naqueles que do ensino têm uma visão utilitarista e tecnocrática, hoje, lamentavelmente, muito em voga um pouco por todo o lado:

«O ensino - e, em especial, o «ensino liberal» - é aquilo que torna possível a sociedade civil. Isto significa que possui uma importância ainda maior do que a sua contribuição para o êxito económico, que, infelizmente, é apenas para que os políticos pensam que serve.»

Ou ainda:

«Aristóteles afirmou que nos cultivávamos para conseguirmos dar uma utilização nobre ao nosso lazer - esta é uma perspectiva completamente oposta à convicção contemporânea de que nos cultivamos para conseguir um emprego.»

O Significado das Coisas é um livrinho precioso. Óptimo para saborear aos poucos e entremear com leituras mais densas.

Não aconselhável a quem nunca tem dúvidas e raramente se engana.

setembro 22, 2008

O clássico fala por si

Como Italo Calvino acerta em cheio, logo a abrir o seu Porquê ler os Clássicos:

«A escola e a universidade deveriam servir para fazer compreender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais que este; aliás, fazem tudo para crer o contrário. Há uma inversão de valores muito difundida pela qual a introdução, o aparato crítico e a bibliografia são usados como uma cortina de fumo para ocultar o que tem a dizer o texto e que só pode dizê-lo se o deixarem falar sem intermediários que pretendam saber mais que ele. Podemos concluir que: Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma vaga de discursos críticos sobre si, mas que continuamente se livra deles.»

Quantos «livros que falam de outros livros» não terão assassinado a vontade de ler os originais...

setembro 18, 2008

Björk+Antony

«September 15th 2008: Björk's new video for "Dull Flame of Desire" with Antony (...). Björk and Antony performed against green screen in New York. The Innocence video project runners-up Christoph Jantos (Berlin) Masahiro Mogari (Tokyo) and Marçal Cuberta Junca (Girona) were each given their own sections of the film, to develop how they wished.»

setembro 10, 2008

A ansiedade do estatuto

Eis um livro que muitas pessoas que se acham importantes deviam ler, mas não lêem porque são demasiado importantes para isso.

Em Status Ansiedade, Alain de Botton escreve sobre as angústias dos indivíduos, de hoje e do passado, com a posição que ocupam na sociedade. A nossa importância aos olhos dos outros, ou seja, o nosso estatuto, sempre foi motivo de preocupação ao longo da história.

O autor define a angústia do Status como «a preocupação, perniciosa a ponto de arruinar boa parte das nossas vidas, com o risco de não conseguirmos conformar-nos aos ideiais de sucesso instituídos pela sociedade envolvente e de podermos, por conseguinte, ser despojados da nossa dignidade e respeito.» Enfim, a preocupação de sermos uns "falhados".

Esta angústia possui uma «extraordinária capacidade de inspirar sentimentos pesarosos.» Em parte, porque as pessoas acham sempre que não têm dinheiro, fama ou influência suficientes. E isto, diria eu, explicaria o facto de muito boa gente se matar (quase literalmente) a trabalhar, a bajular, a aldrabar e a obedecer cegamente para "subir na vida".

Como amante da filosofia que é, Botton relativiza a importância que tanta gente dá ao seu próprio Status, que muitas vezes é conseguido pela mera ostentação de bens materiais. Bem vistas as coisas, o estatuto é algo de efémero, varia consoante as épocas e as sociedades e nem sequer é algo que inspire o amor ou a amizade verdadeiros, como Dostoievski demonstrou à saciedade.

Citando Epicteto: «Não é a minha posição na sociedade que faz o meu bem-estar, mas sim as minhas ideias, e estas posso sempre trazê-las comigo... Só elas são minhas e ninguém mas pode tirar.» Esta frase tem dois mil anos...

Como em outras obras suas, Botton escreve com simplicidade e clareza (um bem raro). Nota-se que é um bom leitor de livros (algo que podemos confirmar também em A Arte de Viajar). Disserta sobre figuras maiores da literatura, da pintura, da música, da filosofia, sem reverência nem floreados. Em suma, o escritor acaba por ser um bom pedagogo do saber.

Status Ansiedade, confirma-se, é um excelente complemento à leitura de Affluenza, de Oliver James, sobre o qual escrevi aqui.

Boas leituras, para quem não se importar com o Status que elas dão ou retiram a quem quer que seja.

agosto 17, 2008

As nuvens que passam...



De quem gostas mais, diz lá, homem enigmático? De teu pai, de tua mãe, de tua irmã ou de teu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Dos teus amigos?
- Eis uma expressão cujo sentido até hoje ignorei.
- Da tua pátria?
- Não sei a latitude em que está situada.
- Da beleza?
- Amá-la-ia de boa vontade, divina e imortal.
- Do ouro?
- Odeio-o tanto como vós a Deus.
- Então que amas tu, singular estrangeiro?
- Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!

(Charles Baudelaire, O Estrangeiro)

agosto 12, 2008

Cinema para quem não vai à praia

Há dois realizadores em início de carreira, um alemão, outro russo, a seguir com atenção, pois as suas primeiras obras manifestam um fulgor e uma maturidade invulgares.

Hans Weingartner mostra o que (já) vale na sua segunda metragem, Os Edukadores (2004), editado por cá em DVD pela Atalanta Filmes. Trata-se um contundente libelo contra o culto do dinheiro nos países ricos. Mas não deve ser reduzido a "filme-denúncia", uma vez que é uma obra que autoriza múltiplas leituras.

Idealismo juvenil versus ganância acomodada, jovens revolucionários contra ex-revolucionários (aqueles apanhados em cheio pelo Maio de 68 e agora velhos-podres-de-ricos), denúncia do consumismo exacerbado e, ainda, crítica feroz de uma certa estupidificação dos europeus alimentada por quatro horas diárias dedicadas pelos mesmos a ver televisão.

Weingartner diz partilhar os mesmos ideais das personagens, Jan, Peter e Jule, do seu filme: «Acho que já ninguém pára para olhar o mundo de forma crítica. Ninguém diz: "Acordem! Isto é perverso! Vamos parar isto!". Apenas 10% da população mundial goza da riqueza produzida, enquanto os restantes 90% vive na pobreza e fome. No entanto, há suficiente trigo no mundo para providenciar 2000 calorias por dia para cada habitante da Terra. O problema é que o trigo não é bem redistribuído. 90% do mundo está a morrer à fome enquanto 10% faz dietas. Podíamos viver no paraíso mas a maioria das pessoas vive na merda.»

No site da Atalanta, pode ler-se uma entrevista com o realizador, o resumo do filme, críticas, etc..


Em O Regresso, também editado pela Atalanta, o russo Andreï Zviaguintsev pega num enredo simples - «A vida de dois irmãos é subitamente perturbada pelo reaparecimento do pai. A única memória que dele os dois irmãos guardavam era a de uma velha fotografia com dez anos. Será que ele é verdadeiramente o pai deles? Por que regressou depois de tantos anos?» - e desenvolve uma narrativa fílmica impregnada de tensão e rigor estético, pontuado, aqui e ali, pelas sombras do cinema de Tarkovski e de Sokurov.

Como escreveu Jorge Leitão Ramos, no Expresso, neste filme «estabelece-se um clima ficcional denso e opressivo, cuja poética pode fazer lembrar Tarkovski (...) O Regresso é um filme onde há uma perfeição formal inatacável e uma dor que se espalha sem renúncia.»

Para primeira obra, é estupendo. Veneza reconheceu-o e deu-lhe o Leão de Ouro, em 2003.


A ver:
Trailer de Os Edukadores
Trailer de O Regresso

julho 31, 2008

O Silêncio dos Livros

O ensaio O Silêncio dos Livros, de George Steiner, começa com uma advertência:

«Temos tendência a esquecer que, por serem altamente vulneráveis, os livros podem ser suprimidos ou destruídos.»

Pelo meio, esta verdadeira declaração de amor aos livros e à leitura faz-nos parar várias vezes para saborear uma releitura:

«Um dos requisitos fundamentais (para a leitura) é, também, o silêncio. À medida que a civilização urbana e industrial foi prevalecendo, o nível de ruído conheceu um aumento exponencial, estando hoje próximo da loucura.»

«Ou, como sussurrava Borges: "A censura é mãe da metáfora". Quando o aparelho de repressão cede aos valores veiculados pelos mass media ou ao matraquear da publicidade, como acontece hoje em dia na Europa ocidental, assistimos ao triunfo da mediocridade.»

Steiner fecha em grande, interrogando-se:

«Enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada? As torres que nos isolam são mais sólidas que o marfim. Não sei de resposta satisfatória para este problema.
Contudo, temos de encontrar uma resposta. Temos de a encontrar, se quisermos ser merecedores do privilégio desta nossa paixão, do milagre sempre renovado de segurar nas mãos um novo livro.»

O Silêncio dos Livros, George Steiner

julho 18, 2008

O spleen de Marianne Faithfull

A beleza de Sleep é directamente proporcional ao grau de spleen que provoca. Não terá sido por acaso que Patrice Chéreau escolheu este tema, retirado do álbum A Secret Life, para o epílogo de Son frère, um filme duro, em que a iminência da morte por doença leva a personagem principal, Thomas, a reflectir sobre a própria existência.

Mas, bem ouvidas as coisas, dureza, na voz, nas palavras, nos rasgos emocionais, bem que podia ser o nome do meio de Marianne Faithfull. É ouvir o álbum Broken English para se perceber porquê. Quem aguentar o embate, nunca mais a larga.

Só depois de deve passar por este discreto A Secret Life, em que Angelo Badalamenti (conhecido pela banda sonora de Twin Peaks, a famosa série de David Lynch) toma conta das orquestrações.

A Secret Life começa com Marianne a declamar Dante. Fecha com Shakespeare. E está muito bem assim.

julho 14, 2008

Mar aluado


© Helder Bastos
Matosinhos, 2008

julho 08, 2008

Pode alguém ser quem não é?

O livro Affluenza é uma espécie de grande reportagem interpretativa levada a cabo por um psicólogo inglês. Oliver James andou pelos quatro cantos do mundo a entrevistar pessoas para tentar perceber por que razão tanta gente quer ter o que não têm e ser quem não é, ficando deprimida pelo meio. Por que é que cada vez mais indivíduos são afectados pelo vírus da Affluenza?

Este vírus, clarifica o autor, «é constituído por um conjunto de valores que nos tornam mais vulneráveis aos distúrbios emocionais e implica dar mais valor à obtenção de dinheiro e de bens, ter bom aspecto aos olhos dos outros e desejar ter fama.»

Na sua passagem por cidades como Nova Iorque, Sidney, Moscovo, Singapura, Xangai ou Copenhaga, James constatou que o vírus tem alastrado: há cada vez mais homens e mulheres frustrados ou deprimidos por almejarem sempre mais bens e estatuto social ou por quererem ter uma aspecto físico melhor. E, quanto mais querem, mais têm de trabalhar para isso, prejudicando a qualidade de vida e propiciando a degradação das relações familiares (a começar pelos filhos), algo veementemente condenado pelo autor.

James aponta o dedo ao que chama de Capitalismo Egoísta (dá para perceber que o psicólogo não é um tipo de direita, nem tão-pouco vai à missa com a "esquerda" Tony Blair) como grande responsável pela propagação do vírus: «o Capitalismo egoísta dissemina a Affluenza; os EUA são a apoteose do Capitalismo Egoísta; quanto mais americanizada for uma nação, mais Capitalista Egoísta será e infectada pelo vírus da Affluenza.» A Dinamarca é o país apontado como sendo o menos infectado.

Basicamente, uma sociedade Capitalista Egoísta vive num ciclo vicioso e pernicioso: trata de aperfeiçoar as técnicas da criação de necessidades (publicidade) para levar as pessoas a comprar mais produtos e serviços (consumo) para o que, naturalmente, têm de se matar a trabalhar para serem "bem sucedidas" (carreira).

Ao longo das mais de 400 páginas do livro, James usa a sua experiência como psicólogo para analisar as respostas e atitudes das inúmeras pessoas que entrevistou. Entra, inclusivamente, em choque com algumas teorias de colegas de profissão, por sinal norte-americanos.

Oliver, que aos olhos de muitos pragmáticos parecerá um lírico, conta também as suas histórias pessoais e familiares, faz diagnósticos, não esconde as suas preferências políticas e sociais e, no final, deixa algumas propostas, ou "vacinas", para nos imunizar contra o vírus.

É uma pena que o psicólogo não tenha passado por Lisboa ou pelo Porto nesta sua empreitada. Certamente, ficaria abismado com a disseminação do vírus, sobretudo o da estirpe que se apodera, sem dó nem piedade, dos novos-ricos.

Affluenza é um contributo, para nós, simples leitores, muito importante para o questionar de algumas ideias feitas ou práticas adquiridas em relação ao ter e ao ser. Ter para exibir, não. Ser, no respeito pelas nossas motivações intrínsecas, sim.

É uma pena que Oliver James não conheça Sérgio Godinho para, em jeito de epílogo de livro, citar uma das canções do cantor português, rematada assim:

"Pode alguém ser livre
se outro alguém não é
a corda dum outro
serve-me no pé
nos dois punhos, nas mãos,
no pescoço, diz-me:
Pode alguém ser quem não é?"


A ver:
Oliver James explica Affluenza (vídeos)

julho 02, 2008

Os moralizadores



«Quando os moralizadores atacam a legislação liberal sobre a homossexualidade, o aborto, a prostituição, a censura, a blasfémia, a bastardia e outras matérias semelhantes, estão a manifestar hostilidade relativamente a estilos de vida que lhes desagradam pessoalmente, e a tentar impor, no seu lugar, as suas próprias escolhas, geralmente sob a forma de uma fantasia tradicionalista, os "valores de família".»

junho 28, 2008

Jocelyn Pook à sombra

Jocelyn Pook merecia melhor sorte. À semelhança do que acontece com Virginia Astley (entre muitas outras compositoras pouco mediáticas), Pook também "não passa" grande coisa em Portugal. A única vez que me lembro de a ter visto esta inglesa por cá foi... no cabo, no canal Mezzo, já lá vão uns anos.

Além de compor para cinema, televisão, teatro e dança, Pook toca violino. Os temas que Kubrick usou no filme De Olhos Bem Fechados contam-se entre os mais conhecidos. Bastante menos famosa é, por exemplo, a banda sonora que compôs para Como matei o meu pai (fotograma no último post), de Anne Fontaine.

A banda sonora de Caravaggio, filme realizado por Derek Jarman e já aqui elogiado, inclui também temas desta discreta compositora, bem como O Mercador de Veneza, de Michael Radford, ou Gangs de Nova Iorque, de Scorsese.

Jocelyn Pook não é fácil de catalogar, nem de gostar à primeira. E os bons artistas sabem como isso é fatal para quem sonha com alta fama e lugares nos topos das vendas. Mas, os verdadeiros artistas, esses estão positivamente a marimbar-se para isso. Quase tudo o resto é fancaria que por aí berra por um fugaz lugar ao sol.

Discover Jocelyn Pook!

junho 21, 2008

Fotograma: Berling e Bouquet


Charles Berling e Michel Bouquet fotografados por Jean-Marc Fabre no filme Como matei o meu pai, de Anne Fontaine

junho 19, 2008

Ser humano ao telemóvel



«Talvez a crise das relações humanas, desde o casal até à extensão social do grupo pequeno e do grupo grande, explique parcialmente o laço que existe entre um ser humano e um telemóvel, um objecto que, embora pequeno, tem dentro de si um mundo, até ao ponto de se chegar a pensar que é o mundo. E, se o mundo se transformar em medo, eu posso desligá-lo: na verdade, basta premir uma tecla.»

Vittorino Andreoli, O Mundo Digital

junho 16, 2008

A perda de Esbjörn Svensson

O pianista sueco Esbjörn Svensson, falecido ontem, aos 44 anos, liderava «um dos mais excitantes e originais» trios de piano no jazz actual, escrevia, em 2004, Joshua Weiner, no All About Jazz. Subscrevo por inteiro.

Svensson, que tinha agendado um concerto na Casa da Música, no Porto, no final do ano, conseguia congregar apreciadores de jazz e fãs de outros géneros musicais. Neste particular, o baterista do trio, Magnus Öström, tinha um papel primordial, desenvolvendo uma fusão de ritmos rock, jazz e electrónica.

Ao piano, Svensson era capaz das mais suaves tiradas líricas, um pouco ao jeito de Bill Evans ou de Brad Mehldau, mas também de arrancar do instrumento a sua faceta mais percussiva, sobretudo em temas mais "pesados".

O trio, fundando em 1990 e com uma dezena de álbuns editados, ainda teria, certamente, muito para dar aos novos rumos do jazz. Recupero aqui o vídeo, que passei no Travessias o ano passado, do tema Goldwrap (do fantástico álbum Tuesday Wonderland), que permite confirmar a frescura musical e visual do Esbjörn Svensson Trio:



A ler e ver:
Site oficial do E.S.T.
O E.S.T. no All About Jazz

junho 11, 2008

maio 28, 2008

Amor e filosofia

Não é um romance sobre o amor. Mas também não é um livro de filosofia sobre o amor. É uma primeira obra de ensaios romanceados sobre o amor, escritos por um ex-professor e actual escritor com queda para a filosofia. Alain de Botton, de seu nome.

Nasceu na Suíça, tem 39 anos e vive em Londres. Tem no currículo vários livros (alguns dos quais, como O Consolo da Filosofia, "best sellers") e séries documentais produzidas para televisão.

Botton tem sentido de humor, escreve de forma muito clara, esquiva-se a rodeios na linguagem e procura, de facto, tornar diversas questões filosóficas acessíveis a um público alargado. Esta é, aliás, uma das imagens de marca da sua escrita.

É isso mesmo que procura fazer em Ensaios de Amor, editado pela primeira vez em Portugal o ano passado, pela Dom Quixote. Cada capítulo é iniciado com uma pequena formulação de teor filosófico (a idealização do amor, o subtexto da sedução, corpo e mente, beleza, intimidade, «terrorismo romântico», amor ou liberalismo, «é a beleza que faz nascer o amor, ou o amor que faz nascer a beleza?», etc.) que o autor depois ilustra com um par romanceado que se enamora, conhece e separa no final. Ela, Chloe, e ele, Will. Um casal de namorados, afinal, como milhões de outros.

É um bom livro para entrar na escrita de Botton. Status Ansiedade, uma obra sobre as angústias contemporâneas provocadas pela busca de estatuto social, está na calha. Será, certamente, um bom complemento ao excelente Affluenza, de Oliver James, sobre o qual escreverei um dias destes.

maio 19, 2008

Stalker

Em 1982, Stalker venceu o Prémio do Júri Ecuménico de Cannes. Que lugar teria hoje um filme destes - denso, complexo, rigoroso, lento, longo, poético, angustiante, "existencial", belo - num festival onde se passeiam Mike Tyson e Angelina Jolie?
E onde cabe hoje o cinema de Tarkovski no nosso país? Tirando a Cinemateca e uns poucos resistentes cineclubes, em quase lado nenhum. O lado nenhum jaz soterrado em toneladas de pipocas.

Quem, onde, como se cultiva e desenvolve hoje o gosto pelas cinematografias de autor? Como fazer chegar às novas gerações, "educadas" a doses cavalares de detritos mercantis com o carimbo de Hollywood, um outro cinema? Missão Impossível.

Escrever sobre o assombroso Stalker, que nos surge sob nova luz a cada revisão, dava um tese de mestrado. Valha-nos a simplicidade do próprio Tarkovski. Citação retirada do seu livro Esculpir o Tempo:

«Em Stalker, faço uma espécie de afirmação cabal: isto é, a de que basta o amor pela humanidade - milagrosamente - para provar que é falsa a suposição grosseira de que não há esperança para o mundo. Este sentimento é o nosso maior valor comum e indiscutivelmente positivo. Apesar de já quase não sabermos amar...».



maio 13, 2008

Sylvain Chauveau leva Depeche Mode às cordas

Sylvain Chauveau pegou num punhado de grandes canções dos Depeche Mode, despiu-as de batida electrónica, juntou-lhes um generoso ensemble de cordas (Ensemble Nocturne) e produziu um disco magnífico: Down to the Bone - An Acoustic Tribute to Depeche Mode.

Neste álbum, datado de 2005, a linearidade acústica é entremeada, aqui e ali, com piscadelas fragmentárias de som de computador, um pouco ao jeito de Alva Noto. Nada que prejudique o equilíbrio melancólico geral dos temas.

Ajuda muito a apreciar esta colheita o conhecimento prévio dos temas originais dos Depeche Mode, escritos, como quase todos, por Martin L. Gore.

Como este Never Let Me Down Again:

(dica de Naná)

maio 08, 2008

A Ronda da Noite no escuro de Lisboa

A estreia de um filme de Peter Greenaway devia ser motivo de júbilo e alarde. Mas não é. Bem pelo contrário. A Ronda da Noite estreia hoje e só em... Lisboa. No Porto, cidade-cemitério cinéfilo, nem vê-lo (longe vão os tempos em que podíamos ver filmes do Greenaway na capela de Serralves, imagine-se). E, como se sabe, o cine-pipoca de shopping dos arrabaldes da "capital do norte" devora hoje todas as salas disponíveis.

O principal diário de referência do país também não deu pela estreia. Pelo menos, na edição da "província". Nem uma referência, por pequenita que fosse, no P2. Na edição online, no Cinecartaz, vá lá, temos direito ao resumo do filme:

«O ano 1642 marca uma viragem na vida do famoso pintor holandês Rembrandt, que perde o seu estatuto de respeitada celebridade e se transforma num pobre desacreditado. Perante a insistência da sua mulher grávida, Saskia, Rembrandt aceita pintar a Milícia dos Mosqueteiros de Amesterdão, num retrato de grupo que mais tarde ficará conhecido como "A Ronda da Noite". Rembrandt rapidamente se apercebe que há uma conspiração em marcha e através dessa pintura encomendada está disposto a pôr a nu os conspiradores, construindo a sua acusação sob a forma de um quadro que desvela o lado hipócrita e negro da época de ouro da sociedade holandesa.»

Por isso, subscrevo por inteiro a "petição ao mercado" feita por João Lopes no Sound + Vision a propósito da estreia de A Ronda da Noite:

«A petição é muito simples: 1) - não abandonem comercialmente o filme; 2) - não o estreiem sem promoção; 3) - não o tratem como se estivesse obrigado a comportar-se como um blockbuster...»


Já agora, deixo aqui a minha modesta petição, dirigida às editoras de filmes: coloquem no mercado de DVD, com carácter de urgência, pois já estão muitíssimo atrasadas, algumas das obras marcantes de Greenaway, tais como: Os Livros de Próspero, O Livro de Cabeceira, O Bebé de Macon ou O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela.

abril 27, 2008

Diálogo mínimo para entender "Pola X"



Pierre: "Onde estamos nós?"
Isabelle: "Estamos fora de tudo".

abril 17, 2008

Ensaio fotográfico sobre locomotiva decadente

(dicas para visualização: clicar com o rato sobre as fotos para zoom; avançar o ecrã para a direita clicando sobre a seta; ver, de preferência, em modo "full screen").

abril 16, 2008

Fim de linha

Comboio no Pocinho
© Helder Bastos
Pocinho, 2007

abril 13, 2008

Noite na Terra

As personagens principais de Noite na Terra são actores secundários na vida. Giram no lado B da sociedade. Vivem e sonham acordados enquanto as cidades dormem. Jarmusch gosta delas (e nós, no final do filme, vamos pelo mesmo caminho). Entrega-lhes o palco principal. Leva-nos a ver com outros olhos os desafortunados, como, aliás, já fizera em Vencidos pela Lei.

Cinco cidades, cinco taxistas. O sonho da taxista de Los Angeles (Winona Ryder) é ser mecânica de automóveis, tal como os seus irmãos. Mesmo quando lhe oferecem de bandeja a possibilidade de ser actriz de cinema em Hollywood.

O taxista de Nova Iorque é um alemão de leste (Armin Mueller-Stahl), um ex-palhaço. Pega pela primeira vez no táxi e mal sabe conduzir. Está-se a marimbar para dinheiro. Vê felicidade nas coisas mais simples. Diverte-se como uma criança, ingénuo numa cidade ameaçadora.

O taxista de Paris é um negro que apenas quer ser respeitado. A sua passageira da noite, que lhe vai desfazer alguns preconceitos, é cega, diz que vai ao cinema para "sentir os filmes" (lindo) e passeia-se junto ao Sena, madrugada fora.

O de Roma é um total passado dos carretos encarnado por Roberto Benigni (só podia ser ele). O padre que leva atrás acaba por ter um ataque cardíaco fatal, ajudado por uma confissão do taxista sobre as suas primeiras experiências sexuais, que haviam envolvido uma abóbora e uma ovelha chamada Lola...

O taxista de Helsínquia tem uma história deprimente para contar a um grupo de amigos bêbados e falhados que lhe entra no táxi, numa noite gélida de neve. O filme acaba aqui, simbólica e melancolicamente, no amanhecer ressacado de um novo dia.

Tom Waits, aquele que canta que o piano é que andou a beber, não ele, toma conta da banda sonora:

abril 03, 2008

Chegar a Purcell pela voz de Nomi

Haverá muitas maneiras de chegar à música de Henry Purcell (1659-1695), um dos expoentes do barroco inglês. Pela voz do alemão Klaus Nomi será, certamente, uma das mais improváveis.

Nomi, com a sua voz aguda, quase de castrato, foi um objecto meio alienígena no panorama musical do início dos anos 80. Misturava rock com disco e metia temas clássicos e ópera pelo meio. Vestia roupas estranhas, puxava pela maquilhagem e dava espectáculos bizarros. Um tipo interessante, portanto. Foi uma das primeiras pessoas famosas no meio a morrer de Sida, em 1983. Deixou apenas três álbuns editados.

Num deles, Encore!, está incluída uma passagem, absolutamente magnífica, da semi-ópera King Arthur, de Purcell. Neste vídeo, vemos um Klaus Nomi já debilitado pela doença interpretar Cold Song, onde, no final, é cantada a frase «Let me, let me, Freeze again to death!». Nomi morreria seis meses depois:


(dica de Naná)

março 31, 2008

"Les femmes qui lisent sont dangereuses"

Cannes
© Helder Bastos
Cannes, 2007

março 26, 2008

Sobre materialistas invejosos e "autistas digitais"

Dois livros para ler, logo que a disponibilidade de tempo o permita: Affluenza, de Oliver James, e O Mundo Digital, de Vittorino Andreoli. Ambos tratam temas relativamente novos, pertinentes para o entendimento das sociedades contemporâneas. À partida, não parecem ser livros tranquilizadores. Mas, não são os livros do desassossego os melhores?

O primeiro: «Actualmente, há uma epidemia de affluenza em todo o mundo – uma obsessiva e invejosa vontade de ter o que os outros têm – que causou incríveis aumentos de depressão e ansiedade a milhões de pessoas. Ao longo de nove meses, Oliver James viajou pelo mundo para tentar perceber porquê. Descobriu como, apesar das diferentes culturas e níveis de vida, a affluenza se está a propagar.

Visitou cidades como Sydney, Singapura, Moscovo, Copenhaga, Nova Iorque e Xangai e em cada uma delas entrevistou várias pessoas na esperança de perceber a razão deste fenómeno e como podemos aumentar a força do nosso sistema imunitário emocional. Porque é que tantas pessoas querem ter o que não têm e ser quem não são, apesar de serem mais ricas e mais libertas de limitações tradicionais? A resposta a esta pergunta revela como recuperar a ligação ao que realmente interessa e aprender a valorizar o que já se tem.» (Civilização Editora)

O segundo, escrito por um psiquiatra, é resumido assim: «Dentro destas cada vez mais pequenas máquinas digitais estão contidas infinitas possibilidades de comunicar, informar-se, realizar um negócio, ouvir a nossa música favorita ou até mesmo… namorar – tudo isto em tempo real!

É tipicamente o caso do telemóvel, considerado o expoente máximo da tecnologia digital pelo autor, um psiquiatra italiano, que analisa os múltiplos aspectos da inquietante relação entre o ser humano e o seu telemóvel. Sem pôr de parte as oportunidades que o mundo digital nos proporciona, Andreoli alerta para os perigos da perda dos laços afectivos saudáveis com a vida real, sobretudo para os adolescentes que correm o risco de fechar-se num mundo formatado, como verdadeiros «autistas digitais». (Editorial Presença).



Livros lidos recentemente recomendados pelo Travessias:
Deus não é Grande - Como a Religião Envenena Tudo, de Christopher Hitchens
A Felicidade Paradoxal - Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, de Gilles Lipovestky
Amor Líquido - Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, de Zygmunt Bauman
O Spleen de Paris, de Charles Baudelaire


março 19, 2008

Antony para dançar


Há três anos, no final de um concerto em Madrid, Antony virou-se para a assistência e desabafou: «Estou tão contente que me apetecia poder cantar uma canção alegre para comemorar... mas não tenho nenhuma.» Agora já tem.

Antony, dono de um belo repertório de canções tristes e melancólicas, deu uma guinada dançável. Juntou-se ao projecto do norte-americano Andrew Butler, Hercules & Love Affair, para dar voz a temas que parecem saídos das pistas de dança dos anos 80, com disco sound, tipo Village People, à mistura. Uma delícia de leveza retro.

março 16, 2008

Casa no céu

Casa da Música
© Helder Bastos
Porto, 2007

março 09, 2008

Um bom livro...

«Muitos homens constituem um fardo para o mundo; mas um bom livro é a encarnação preciosa de um espírito superior, conservado e estimado com o objectivo de viver para além da morte.»

John Milton (1608-1674)

março 01, 2008

Venha daí o Barton Fink


Agora que os irmãos Coen estão na berra por causa dos Oscars e do seu último filme, talvez fosse uma boa oportunidade para as editoras se lembrarem de editar por cá em DVD aquele que é, para mim, a melhor obra deles: Barton Fink. Sobre este filme, recupero (agora com vídeos...) uma entrada anterior do Travessias:

«Barton Fink é, enigmaticamente, um grande filme. Talvez o melhor dos irmãos Coen. Bem escrito (por eles mesmos), apresenta um grupo de actores de grande calibre, a começar pelo inimitável peso pesado John Goodman e a acabar em John Turturro, numa composição primorosa, a lembrar um pouco o estilo de algumas personagens esquizofrénicas de Cronenberg.

O canal Hollywood exibiu-o, em boa hora, há poucos dias. Em Barton Fink, datado de 1991, ano em que ganhou a Palma de Ouro, todas as personagens são um pouco grotescas, exageradas, distorcidas, movendo-se no limiar da normalidade, limiar esse gerido sempre com grande mestria.

Aqui e ali, os Coen entregam-nas à surrealidade, à «vida na mente», como na cena em que Goodman, gritando precisamente «eu mostro-vos a vida da mente!», corre pelo corredor de um hotel sinistro fora deixando atrás de si paredes em fogo e disparando a caçadeira contra dois detectives.


O facto de o filme ser de difícil catalogação só o torna mais interessante. O enredo deixa muitas pontas por resolver. Não dá, como nos filmes banais, todas as respostas, de forma óbvia e sem ambiguidades. Aquela caixa amarrada com cordel tinha mesmo a cabeça da secretária/amante de um escritor alcoólico que trabalhava em Hollywood?

Foi um prazer imenso rever Barton Fink, obra em que, como escreve Hal Herickson, no All Movie Guide, nada é o que parece e nada resulta como o planeado. Dele guardava algumas imagens marcantes, como a do corredor em chamas e uma outra, em que um poderoso produtor de filmes de Hollywood (mais tarde promovido a general), espumando de ira, à beira da loucura, exigia a um funcionário seu que beijasse os pés do incomodado escritor da Broadway... Fink.» (26.06.2005)

fevereiro 24, 2008

Fotograma: Vivian Wu

Vivian Wu fotografada no filme O Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway.

fevereiro 15, 2008

Gavin Bryars, Tom Waits e um vagabundo

Uma das coisas que mais gozo dá no YouTube é encontrar peças raras, vídeos que nunca vimos, nem tão pouco sabíamos que existiam. É o caso deste Jesus' Blood Never Failed Me Yet, do compositor britânico Gavin Bryars.

Composta em 1971, a peça foi sendo regravada e aumentada ao longo dos anos. Nesta versão, podemos ouvir duas vozes: uma é a de um vagabundo das ruas de Londres; a outra é de Tom Waits (um dos músicos "residentes" do Travessias), cujo empenho em experimentar novas sonoridades se tem, felizmente, confirmado ao longo da sua carreira.

Gavin Bryars, nascido no Yorkshire, em 1943, começou por estudar filosofia e só depois música (um dos seus bons álbuns chama-se, curiosamente, Farewell to Philosophy). Compõe e toca contrabaixo. A sua extensa discografia começa em 1971.

Os trabalhos de Bryars cruzam diversos estilos musicais, incluindo jazz, improvisação, minimalismo, música experimental e de câmara, avant-garde, neoclassicismo e ambiente. Talvez por isso não passe em televisões e rádios de massa. É pena.

(dica de Naná)

fevereiro 08, 2008

fevereiro 07, 2008

Os que nos fumam para cima

No meio do bacanal de disparates, imbecilidades e absolutas irresponsabilidades públicas que muito ilustre colunista tem assinado nos mais respeitados jornais do país a propósito da lei do tabaco, é reconfortante ler alguém com um rasgo certeiro de lucidez mínima:

«Sou contra todos os fundamentalismos. E acho inaceitáveis algumas regras que nos querem impor. Cada um deve poder fazer o que lhe apetece, se não interferir com os outros. Mas, quanto à lei do tabaco, tenham juízo! E decoro, os que nos fumam para cima.»

José Carlos Vasconcelos, Visão, 07-02-2008

fevereiro 05, 2008

Vem e Vê o verdadeiro horror

Quando o filme foi estreado, nalgumas salas europeias foi preciso chamar a emergência médica para auxiliar espectadores que se sentiram mal durante a projecção. Em Vem e Vê, mais do que explícita, a violência, sobretudo de ordem psicológica, é latente, persistente e sufocante. Não obstante, no meio do horror da história, Elem Klimov oferece-nos, combinadas com uma banda sonora arrepiante, imagens cinematográficas de rara beleza.

Durante a II Guerra Mundial, 628 aldeias da Bielorússia foram incendiadas e a sua população queimada viva ou fuzilada pelos nazis. É esta a história, verídica, que Klimov nos conta.

Diz o realizador, numa introdução ao filme (um dos extras do DVD, recentemente lançado em Portugal pela Midas Filmes), que tinha de contar esta história, mesmo que ninguém a fosse ver. Porque ele próprio, natural de Estalinegrado, teve de fugir à perseguição das animalescas SS.

A obra, de 1985, acabaria por ter uma enorme repercussão internacional. Venceu o Grande Prémio Moscovo desse ano. Vem e Vê também passou pelo Cineclube do Porto, mas, enfim, nessa altura, ainda se via cinema fora de casa na Invicta. Hoje, como se sabe, o Porto é um belo necrotério cinéfilo.

Como nota a Midas na sinopse, o herói de Vem e Vê é Florya, um adolescente de 16 anos. Se no início é um rapazinho como tantos outros da sua idade, à medida que ele vai conhecendo o horror das execuções perpetradas pelos nazis, a sua cara vai-se transfigurando e envelhecendo. As transformações no seu rosto são o espelho do rosto da guerra.

A última cena do filme, ao som do requiem de Mozart, é absolutamente memorável. Com o rosto transfigurado e encarquilhado, Florya dispara consecutivamente sobre uma fotografia de Hitler no chão. A cada disparo, imagens reais do ditador e da Alemanha no período nazi surgem a andar para trás, como se Florya quisesse fazer recuar o relógio do tempo. Até aparecer uma foto de Hitler bebé ao colo da mãe. Florya não dispara.