junho 29, 2004

Bobbio: o exercício da democracia

«Por outras palavras, quando queremos apurar se houve um alargamento da democracia num dado país, devemos verificar se aumentou, não o número dos que têm direito a participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços em que é possível o exercício desse direito.»

Norberto Bobbio, O Futuro da Democracia.

junho 28, 2004

Ò Santana...

Se Santana Lopes não fosse duro de ouvido e fraco de cabeça, saberia interpretar o alcance de um brilhante 'slogan' mostrado ontem na 'manif' anti-Santana em Lisboa: «Santana, ò meu, S. Bento não é teu».

junho 25, 2004

Kafkianos

Durão Barroso presidente da Comissão Europeia? Santana Lopes primeiro-ministro?!?!?

Só há uma explicação para este cenário de total, absoluta, implacável esquizofrenia política: Kafka voltou do túmulo para nos atormentar e escolheu Portugal para morar.

Da miséria psicológica de massas

O Monde Diplomatique, edição portuguesa, publica este mês um artigo muito interessante do filósofo e escritor Bernard Stiegler.

Em 'O desejo asfixiado, ou como as indústrias culturais destroem o indivíduo', Stiegler oferece-nos um contributo precioso para o entendimento das consequências da actual, e preponderante, massificação global do indivíduo no contexto de sociedades que ele designa de hiperindustriais.

Algumas pontes para a leitura deste artigo:

«O capitalismo hiperindustrial desenvolveu as suas técnicas ao ponto de, diariamente, milhares de pessoas se encontrarem simultaneamente ligadas aos mesmos programas de televisão, de rádio ou de consolas de jogo. O consumo cultural, metodicamente massificado, não deixa de ter consequências sobre o desejo e as consciências. Ao mesmo tempo que se vai esfumando a ilusão do triunfo do individualismo, ganham nitidez as ameaças contra as capacidades intelectuais, afectivas e estéticas da humanidade.»

«Esta época, longe de ser caracterizada pela preponderância do individualismo, apresenta-se como a época do devir gregário dos comportamentos e duma generalizada perda de individuação.»


«É exactamente o que a sociedade hiperindustrial faz dos seres humanos; privando-os de individualidade, engendra rebanhos de seres que vivem com um profundo sentimento de mal-estar.»

junho 22, 2004

Assuntos sérios

Portugal exporta essencialmente três coisas, todas elas inanes: futebol, anacronismos e escândalos.

O julgamento em tribunal de mulheres acusadas de aborto é um anacronismo medieval, um escândalo civilizacional. Os media estrangeiros de países um pouco mais civilizados deliciam-se dando estas notícias.

O escândalo da Casa Pia fez mais pela imagem de Portugal no exterior do que todas as missões do ICEP nos últimos 20 anos.

A ideia de estabelecer quotas para mulheres nas faculdades de medicina é, no mínimo, esquizofrénica. Mas brotou à superfície, qual arroto reprimido. É apadrinhada, não por qualquer grunho de esquina, mas pelo próprio ministro da Saúde! A notícia pode ser lida hoje logo na página de abertura do Elpais.es, o maior diário de Espanha.

Em castelhano, quase dá para rir: «Algunos hombres portugueses están preocupados: el número de mujeres en las facultades de medicina es excesivo y hay que establecer cuotas mínimas para hombres.»

Como pode um país destes querer que alguém o leve realmente a sério?

junho 21, 2004

O mundo é redondo

Como se não bastassem as religiões, agora temos também o futebol.

junho 18, 2004

Um caso perdido

Ora bem, o programa Clube de Jornalistas desta noite, que acabou há cinco minutos, serviu para a entronização definitiva do conceito de assessoria de imprensa no campo jornalístico.

Três jornalistas assessores-jornalistas-assessores estiveram lá, com fraco contraponto ou oposição, a defender a sua dama. A dama da promiscuidade.

Só uma profissão minada pela mais profunda bandalheira normativa e funcional admite que se chegue à situação, absolutamente surreal, de ver o director de um jornal dito de referência ir à televisão, na qualidade de actual director editorial do DN e ex-assessor de Cavaco Silva, defender que não há problema algum na passeata obscena entre as redacções e os corredores do poder político.

Tal como está, o jornalismo em Portugal é um caso perdido.

Careca de Bush à vista

Com os telejornais da pátria bêbados de bola, resta-nos o oásis informativo que é a BBC World, onde o mundo ainda rola e ainda existe.

Destaques do dia: sabe-se hoje, foi o pandemónio geral no dia 11 de Setembro de 2001 quando se soube que vários aviões haviam sido desviados nos céus da América. Ninguém se preparara para o impensável. O impensável aconteceu. Várias entidades pura e simplesmente não souberam como reagir. A hecatombe deu-se.

A comissão de inquérito ao 11 de Setembro conclui, preto no branco: não há qualquer ligação entre a Al Qaeda e Saddam Hussein. Muito menos, qualquer relação entre ambos que tenha alguma coisa a ver com o atentado às torres gémeas. A comissão apenas concluiu que houve contactos entre o Iraque e a rede terrorista.

Bush aparece no ecrã. Insiste na tecla da relação Al Qaeda/Saddam, peixe que o presidente tentou vender ao seu povo desde o início para justificar a invasão do Iraque. E, pelos vistos, fê-lo com sucesso. Sondagens mostram que pelo menos metade do zé povo americano ainda acredita que o ditador de Bagdad teve alguma coisa a ver com o 11 de Setembro. Gente esclarecida é que não vai nesta conversa.

Esboroaram-se todos os pretextos invocados para a invasão unilateral, obstinada e estúpida, do Iraque: as armas químicas, a «amizade» do Saddam com bin Laden e todas as restantes mentiras propagandeadas por aí adiante. A administração norte-americana, encurralada, de careca à mostra, recua até ao argumento mais imbecil. Diz que, bom, apesar de tudo, o mundo está melhor sem Saddam.

Pois está. Mas também estaria muitíssimo melhor sem Bush, Rumsfeld, Cheney, Blair, Sharon, Musharraf, o Kim da Coreia, Portas e muitos outros seres humanos altamente nocivos ao bem estar da humanidade. E, no entanto...

junho 12, 2004

O polvo publicitário

«Ninguém deve esquecer que a publicidade se prende com a primordial e mais temível das artes: a manipulação dos seres humanos.»

Ignacio Ramonet, O Novo Rosto do Mundo.

junho 07, 2004

RTP1 endireita-se para o torto

Telejornal, RTP1, canal do Estado, domingo, horário nobre, 20 horas. Depois de abrir com uma peça sobre o risco de atentados no Euro 2004, José Rodrigues dos Santos dá entrada a uma série de peças sobre a morte de Ronald Reagan, peças essas que o próprio «pivot», responsável pela informação do canal, devia logo a seguir deitar ao caixote do lixo e deitar-lhe fogo.

Foram para aí uns dez minutos, talvez. Reagan, o homem das «firmes convicções», o «carismático», o «herói», o adorado pelo povo, tudo isto segundo a opinião expressa pelo jornalista de serviço no obituário do antigo presidente dos EUA, um actor de segunda que chegou ao patamar mais alto da nação. Só na América...

O cidadão desarmado, o jovem sem memória, chegaria ao fim de ver esta enfiada de peças com a sensação de que Reagan foi o maior presidente de todos os tempos, uma espécie de imaculado super-herói das massas que, imagine-se, derrubou, com a sua fictícia 'Guerra das Estrelas', o império soviético e o muro de Berlim.

Todas as pessoas que apareceram nas peças a perorar, com excepção de Mário Soares (versão soft), colocaram Reagan no altar da prodigalidade histórica: quatro simples cidadãos anónimos (patrióticos americanos) a garantir ao mundo que Reagan foi o maior, pá, Durão Barroso, Cavaco Silva e... até o insignificante do Paulo Portas apareceu a tecer loas ao grande amigo do Papa e da Thatcher.

Não foi dado a ver ao telespectador uma simples voz dissonante. Um contrapontozinho, como mandam as regras jornalísticas. E nem o jornalista que escreveu os textos se dignou a fazer uma referenciazinha que fosse ao facto de Reagan ter protagonizado o escândalo Irão-Contras, ao facto de ter deixado um défice colossal, o falhanço da quimérica 'Guerra das Estrelas'... nada.

Foi um momento de informação televisiva estatal da pior espécie: acéfala, servil e incompetente.

junho 05, 2004

Escorregadela no Público?

Há gestos que podem custar muito caro a um jornal. Sobretudo, se não forem devidamente explicados aos seus leitores.

Segundo notícias publicadas nalguns jornais, entre os quais o DN e o Diário Económico, a Direcção do Público terá decidido retirar uma notícia da secção Nacional «sobre o alegado não pagamento de uma coima fiscal pela ministra das Finanças» (DE). A decisão terá resultado de um contacto de Manuela Ferreira Leite com o director do diário, José Manuel Fernandes.

A mesma Direcção não terá informado a editora da respectiva secção, o que, desde logo, é má política. Tanto é assim que Ana Sá Lopes e a sua sub-editora se demitiram dos cargos. Fizeram bem.

Acto contínuo, o Conselho de Redacção emitiu comunicados em que fala de «acto de censura» por parte da Direcção.

Ora, embora nós, simples leitores (sou leitor diário do Público desde o número 1), não estejamos na posse de todos os dados que nos permitam ajuizar, de modo cabal, o que se passa, a suspeita fica no ar.

Somos tentados a pensar que a Direcção terá sucumbido à pressão directa da ministra e passou por cima das editoras. Tentados a pôr a hipótese de o Público, afinal, não se distinguir dos outros ao nível dos 'fretes'. Enfim, vêm-nos à memória os tristes telefonemas de Aznar para as redacções dos média espanhóis logo a seguir ao 11 de Março e que levaram o prestigiado El Pais a espalhar-se ao comprido, condenando, em manchete, a ETA pelos atentados.

Estas suspeitas são um perigo quando começam a germinar na cabeça dos leitores. Por isso, e dado que a questão põe em causa a própria credibilidade do jornal, era altura de a Direcção vir a terreno pôr tudo em pratos limpos. O director do El Pais, por exemplo, não teve pejo algum em reconhecer publicamente o erro pela manchete da ETA.

Como bem escreve Manuel Pinto no blogue Jornalismo e Comunicação, «a partir do momento em que uma editora com projecção pública se demite e em que um órgão como o Conselho de Redacção segue o mesmo caminho, parece-me que o assunto não é mais do foro interno. E a razão é que está posto em causa o contrato do jornal com os seus leitores.»

Tenha a palavra José Manuel Fernandes.

junho 04, 2004

Pasolini em DVD

Em muito boa hora. Acabam de chegar ao mercado quatro filmes de Pier Paolo Pasolini em DVD, pela mão da Costa do Castelo Filmes: Decameron, Saló, As Mil e Uma Noites e Os Contos de Canterbury.




Um acontecimento cinéfilo da maior importância, portanto. Ensombrado apenas pelo preço absurdo dos DVD.

junho 02, 2004

Jornais online e a persistência no erro

O número de sites de jornais duplicou desde 1999 e a publicidade na Internet continua a crescer regularmente. A constatação, baseada num estudo feito em 208 países, é feita pelo director-geral da Associação Mundial de Jornais, Timothy Balding.

Na sua intervenção durante o Congresso Mundial de Jornais, a decorrer em Istambul, Balding disse que o aumento do número de sites na Internet é um dos exemplos que ilustra como «os jornais mostraram uma vontade inédita de inovar e experimentar estratégias para ganhar novos leitores.»

Balding não estaria certamente a pensar nos jornais portugueses quando disse isto. Na Internet, os jornais digitais lusitanos, bem como os sites das rádios e dos canais de televisão, parecem é apostados em afugentar os leitores.

Abrir um sítio na rede mundial e despejar para lá conteúdos fabricados para o papel ou para as ondas hertzianas, arranjar, quando muito, uns estagiários para disfarçar umas «Últimas» e dizer que se está a inovar e a pensar estrategicamente é mentira. Esta estratégia (será mais a falta dela) conduziu a generalidade dos media online portugueses ao actual estado em que se encontra: vegetativo.

No atinente ao design, navegabilidade, conteúdos próprios, multimédia, hipertexto, actualização permanente, interactividade, para nos ficarmos apenas por estes parâmetros básicos, a esmagadora maioria dos sites é francamente medíocre.

Há, certamente, razões financeiras e de sustentabilidade dos projectos que explicam, quer o fraco investimento, quer mesmo o desinvestimento total nas publicações online em Portugal.

Mas haverá aqui, também, muito do típico espírito empresarial nacional a ajudar nesta explicação: medo de arriscar, falta de visão, fraca apetência para apostar em inovação, persistência no erro, incapacidade para escolher as pessoas certas para os lugar certos e por aí adiante.

O Comércio do Porto faz hoje 150 anos lança a sua edição online, nove anos após o início da aventura do jornalismo português no ciberespaço. Consultada a «edição digital número 1» do diário centenário, o menos que se pode dizer é que está atrasada, no mínimo, uma década.


Ligações

'Receitas de Publicidade na Imprensa Subiram em 2003'
O Comércio do Porto

De olhares: dois filmes quase

Dois filmes, vistos no passado fim-de-semana, cinema em casa, muito bons. E, no entanto... Elephant, de Gus Van Sant, e O Mar Olha Por Ti, realizado pelo japonês Kei Kumai, deixam-nos a sensação de que lhes falta um toque de génio.

Elephant venceu Cannes o ano passado. A crítica, em geral, incensou o filme. A fasquia das expectativas foi colocada bem alto.



O dia-a-dia dos alunos de uma escola secundária de Oregon, nos Estados Unidos, onde acaba por acontecer um massacre idêntico ao do liceu de Columbine, é-nos mostrado por Van Sant de uma forma sóbria, quase contemplativa, com planos únicos longos, demorados, atípicos para os cânones do cinema industrial norte-americano. O realizador parece querer revelar com a sua câmara aquilo que vai dentro da cabeça de adolescentes aparentemente 'normais'.

A narrativa, construída inteligentemente através de flashbacks curtos que se vão entrecruzando, é brilhante. Bate, pois, quase tudo certo neste filme. Excepto a sensação que fica no fim de que o final não deveria ser ali, porque falta ainda alguma coisa. Que a obra não está completa. Que, apesar da riqueza daquilo que nos foi mostrado e sugerido, havia melhor a fazer.

O Mar Olha Por Ti, cuja acção decorre num bordel japonês do século XIX, é também um belo filme. Resulta de um argumento, escrito por Akira Kurosawa, entregue a Kei Kumai para a realização. Kumai respeitou todas as indicações do falecido mestre, incluindo os desenhos por ele deixados para as cenas (Kurosawa era também pintor).

Bem filmado e muito bem fotografado, magistralmente contado, também aqui bate tudo certo. Mas, no final, fica-se igualmente com a sensação de que a fita seria outra se tivesse sido rodada sob o olhar mágico de quem filmou Os Sete Samurais, Ran ou o inultrapassável Sonhos.

Apesar destes parcos 'ses', Elephant e O Mar Olha Por Ti são dois filmes a não perder de vista.