junho 23, 2009

Chatwin e Herzog

Graças ao mundo, os caminhos de Bruce Chatwin, viajante infatigável, escritor talentoso, e de Werner Herzog, realizador destemido e, em bom rigor, um pouco louco, genialmente louco, cruzaram-se.

Uma vez, foi no Gana, onde Herzog rodava o fantástico Cobra Verde, filme baseado no romance O Vice-Rei de Ajudá, de Chatwin. O escritor inglês deixou contadas, num capítulo do livro (póstumo) O que faço eu aqui, as inúmeras peripécias de Herzog naquele país africano.

A páginas tantas, percebe-se por que Chatwin e Herzog tinham tanto em comum:

«(Herzog) Era também a única pessoa com quem podia conversar de igual para igual sobre o que eu chamaria o aspecto sacramental da marcha. Partilhávamos a crença de que o andar não é uma simples terapia, mas uma actividade poética capaz de curar o mundo dos seus males. Herzog resume o que pensa do assunto através de uma afirmação definitiva: "Andar é uma virtude, o turismo é um pecado mortal".»

Herzog levava isto muito a sério: um dia, ao saber que Lotte Eisner, uma das fundadoras da Cinemateca francesa, estava a morrer, pôs-se a caminho a pé, de Munique a Paris, «convencido de que daquela maneira a poderia curar. Quando chegou ao apartamento de Lotte, ela já se sentia melhor e viveu ainda uma dezena de anos.»

Conhecer esta faceta do realizador alemão é fundamental para se perceber o seu cinema grandioso.

junho 13, 2009

Jóhann Jóhannsson: da Islândia, com melancolia

É conterrâneo de Björk e dos Sigur Rós, mas, musicalmente, revela-se mais requintado, planante e melancólico do que aqueles. Jóhann Jóhannsson produz, compõe e toca vários instrumentos. Apesar de ser considerado um dos mais criativos músicos islandeses, em Portugal pouco se conhece da sua obra. Tentar encontrar discos dele nas Fnac, por exemplo, é missão quase impossível.

Jóhannsson já fez música instrumental para instalações de galerias de arte (à maneira de um David Sylvian) e para peças de teatro. É o caso do seu primeiro álbum a solo, Englabörn, no qual podemos ouvir, com imenso agrado, um quarteto de cordas, percussão, piano e órgão, entre outros instrumentos, belissimamente orquestrados, ou não procurasse o músico «beleza e simplicidade», ao bom estilo nórdico.

Englabörn (2002), cuja capa é já em si reveladora de um certo espírito zen do álbum, seduz logo a partir do primeiro tema, Odi et Amo. Os restantes quinze temas são também calmos. E estranhamente envolventes. Aqui e ali, um toque inspirado no Kronos Quartet. Quem gostar, pode partir para a descoberta do último álbum de Jóhannsson, Fordlândia (2008).

Vale mesmo a pena.
As coisas raras são sempre muito mais interessantes.


Para descobrir:
Álbum Englabörn no Deezer
Álbum Fordlândia no Deezer
Vídeo de The Rocket Builder
Site oficial de Jóhann Jóhannsson

junho 05, 2009

Sonata de Tóquio

Temos realizador. Há muito que Kiyoshi Kurosawa é apreciado por esse mundo cinéfilo fora. Os Cahiers du Cinema apontam-no como um dos maiores valores do actual cinema japonês. Sonata de Tóquio, salvo erro a primeira obra deste realizador editada em DVD em Portugal, confirma-o.

Kurosawa pega num tema muito actual, o desemprego, e mostra-nos, num registo simultaneamente contido e minucioso, o grau de devastação que pode provocar no seio de uma família: o desfazer de laços, o estilhaçar de personalidades, o minar da auto-estima, o extremar dos conflitos. O mergulho das personagens numa espiral de auto-destruição que, não poucas vezes, conduz ao suicídio.

Este não é um filme confortável.

Quando as personagens adultas da família - o pai, a mãe - mergulham no abismo, perguntam, lá do fundo do desespero: ainda é possível começar de novo? Talvez esta seja mesmo a pergunta-chave de todo o filme.

Kurosawa sai deste pesadelo, que, afinal, é hoje o inferno de sociedades inteiras, pela porta da reconciliação. Uma reconciliação serena. Sem palavras ou gestos lancinantes. A família recompõe-se. Cola os cacos. A música nas mãos de um filho-prodígio acaba por ajudar nesse milagre.

Debussy, Claire de Lune. Final feliz?


A ver:
Site oficial
Trailer

junho 02, 2009

Tão grande como o mundo

De A Conquista da Felicidade - ensaio brilhante, intemporal, escrito com uma clareza invejável, no qual Bertrand Russel disserta sobre as causas da felicidade e da infelicidade do homem - destacaria a seguinte passagem como a mais inspirada e inspiradora:

«Um homem que tenha alguma vez compreendido, ainda que temporária e resumidamente, o que faz a grandeza da alma, não pode mais ser feliz se permite a si próprio ser mesquinho, egoísta, perturbar-se com acidentes triviais, recear o que o destino lhe possa reservar. O homem capaz de grandeza de alma abrirá completamente as janelas do seu espírito e deixará que por elas entrem livremente os ventos de todos os pontos do Universo. Terá de si mesmo, da vida e do mundo uma imagem tão verdadeira quanto o permitem os nossos limites humanos; ao tomar consciência da brevidade e pequenez da vida humana, compreenderá também que no espírito do homem está concentrado tudo o que pode ter algum valor no Universo por nós conhecido. E verá que o homem cujo espírito reflecte o mundo torna-se, em certo sentido, tão grande como o mundo.»