novembro 29, 2003

Zappa e Ferré

Em tempo de ouvidos duros, massificados de forma bruta à conta de programas televisivos estilo Ídolos, Chuva de Estrelas e quejandos, bem como pelas rádios, quase todas transformadas em «juke boxes» de sucessos de gente que devia ser presa por insulto às cordas vocais de quem sabe cantar a sério, é bom ver que ainda há quem se lembre de gente única, genial, polémica, difícil, pois claro.

Frank Zappa é hoje recordado no caderno Actual, do Expresso. O músico norte-americano morreu há dez anos. Deixou uma obra discográfica imensa e ecléctica. É diferente de quase tudo o que hoje se pode ver e ouvir nos meios audiovisuais.

Em meados deste ano, também fez dez anos sobre a morte de Léo Ferré, outro génio «difícil» da música. Por cá, infelizmente, ninguém se lembrou de o evocar em capa de revista.

novembro 26, 2003

Bebedeiras de bola

O Euro 2004 ainda não começou, mas as televisões, as rádios e os jornais começam já a proporcionar ao povo verdadeiras bebedeiras de futebol, com algumas pausas efémeras para o caso Casa Pia, é certo. Vai do simples matraquear de anúncios com música patriótica às sofisticadas transmissões em directo, horas infindáveis a fio, de espectáculos de inauguração de estádios, aos quais acorrem mágicos bem pagos e políticos babados à cata de migalhas.

Vai tudo atrás da onda. Sem parar. Há catadupas de transmissões (serviço público em horário nobre, portanto), apuramentos, eliminações, relatos, chicotadas, comentários, entrevistas, amuos, chuteiras contra o árbitro, grandes casos nacionais!

O tempo de antena dado a esta gente é pura e simplesmente obsceno. Para o ano, será de fugir.

novembro 25, 2003

Os encantos de Frida

Nem parece ter sido feito pela mesma realizadora do inenarrável Titus. Frida, de Julie Taymor, pode ser agora visto ou revisto em DVD. É um filme deslumbrante. Na composição, na fotografia, na história, na pintura, na música (com Lila Downs e Caetano, só podia ser), nos actores. Tem, definitivamente, um toque feminino.

Salma Hayek assina aqui uma soberba interpretação no papel da pintora mexicana, mulher excêntrica do pintor, mulherengo inveterado e comunista até ao tutano, Diego Rivera.

Nalgumas passagens desta obra, Taymor consegue fundir, numa osmose plástica feliz, o estático das pinturas de Frida com imagens cinematográficas de grande beleza. As cores do México em muito ajudam a compor o ramalhete.

A época vivida por este turbulento casal de artistas é também ela acrescento de fascínio: um Trotski fugido das garras de Estaline à procura conforto no regaço de Frida, uma Paris que tresanda a glamour decadente, uma Nova Iorque de Rockfellers sem sentido artístico «revolucionário». Frida é uma oportunidade para respirar bom cinema. Só é pena ser falado em inglês.

novembro 21, 2003

Mystic River: um rio simples

Clint Eastwood explicava, há pouco, num telejornal a forma como fez Mystic River, filme agora estreado por cá. Foi tudo ao natural, isto é, nos antípodas de blockbusters como The Matrix: sem imagens geradas por computador, sem truques de montagem, sem efeitos especiais de qualquer espécie. Apenas uma boa história e bons actores (Sean Penn e Tim Robbins à cabeça), interagindo, de facto, durante as filmagens.

É uma espécie de «back to basics», expressão a que o antigo primeiro-ministro inglês John Major deu má fama noutro contexto, a via escolhida por Eastwood para esta fita. Um regresso à verdade no cinema norte-americano?


novembro 20, 2003

Nietzsche: Eis o homem

O eterno retorno aos escritos de Nietzsche é sempre um imenso prazer. Ecce Homo é de verbo fortíssimo, na primeira pessoa. O filósofo convida-nos - ou antes, desafia-nos, em tom por vezes altivo e provocador - a acompanhar o seu poderoso e, para altura, meados do século XIX, radical labirinto de ideias. Logo no prefácio, não deixa dúvidas quanto à sua individualidade, vincada e de ruptura: «Escutai-me! Pois, sou assim e assado. Sobretudo, não me confundam com outro.» Em tom autobiográfico, o pensador não deixa pedra sobre pedra nas suas críticas, sobretudo quando ataca o «espírito alemão» e os alemães em geral e a moral cristã («O cristianismo, a religião transformada em negação da vontade de viver!»).

Mas nem só da complexidade de referências à «transmutação de todos os valores» respira Ecce Homo. Nietzsche discorre também sobre aspectos muito pessoais: a sua doença, as viagens a Itália, as paisagens, a importância de amigos como Wagner ou Lou Andreas-Salomé na sua vida, a música, a poesia. Este livro, onde o autor passa em revista os 'bastidores' da produção de obras suas, como O Crepúsculo dos Ídolos, Assim falou Zaratustra, A Gaia Ciência ou Para além do Bem e do Mal, entre outras, talvez seja o melhor ponto de partida para se entrar no seu mundo peculiar. Sempre tendo em conta que os seus escritos nem sempre são de fácil digestão.

Independentemente de se concordar ou não com ele, há no mínimo que reconhecer-lhe a enorme coragem, a frontalidade total, no afrontar de dogmas enraizados de modo muito profundo na sociedade de então. Só mesmo quem de si próprio diz «Não sou um homem, sou dinamite!» pode aguentar as altas pressões de uma solidão de génio.