maio 25, 2009

Uma história impossível

A História de Marie e Julien é um bolero de Ravel em forma de cinema. Rivette vai abrindo, num suceder tranquilo de subtilezas, sem truques de imagem ou música de fundo, as portas dos recantos mais obscuros de Marie e de Julien.

No começo, Julien revela-se a personagem mais intrigante. Relojoeiro, quarentão, pacato, sozinho. Faz chantagem com uma mulher de negócios, que se dedica a vender tecidos orientais falsificados. Até que entra Marie.

Ela regressa (tinham-se conhecido no passado) de forma inesperada e confusa. Instala-se, sempre misteriosa, no dia-a-dia feito de precisões mecânicas e rodas dentadas dos relógios de Julien. E o amor acontece. A morte também.

E Rivette fecha com uma ressurreição impossível. Só possível no simbolismo da força do amor e do cinema. É uma tese dupla, a do realizador francês: Marie morre por desamor desesperado de um homem e regressa à vida por amor imenso a um outro.

Não é fácil filmar isto de forma convincente. Rivette fá-lo de forma magistral. E o filme fica-nos a reverberar por muito tempo. Como um terramoto, História de Marie e Julien não se faz ouvir muito alto. Mas tem um efeito arrebatador.

maio 19, 2009

Um concerto de chorar por menos

Quando vi um porreiro entrar na sala com um copo de cerveja na mão, algo me disse que o concerto não ia correr bem. E não correu mesmo. Um público histérico, barulhento, infantil, que, por vezes, parecia ter sido tirado à pressa de um concerto do Quim Barreiros no queimódromo, conseguiu dar cabo do intimismo da música de Antony.

O Coliseu do Porto é grande e frio. Ao contrário do Theatro Circo, em Braga, pequeno e acolhedor, e onde Antony deu, faz tempo, um concerto absolutamente memorável. Ali, música, músicos e público estiveram em sintonia perfeita, respeitando-se, ouvindo-se ao pormenor. Ontem à noite, de urros a flashadas constantes, passando por palermas a atender telemóveis e por bocas de refinado mau gosto atiradas ao músico, houve de tudo. Para esquecer.

Dá vontade de parafrasear o próprio Antony:

«I need another place
Will there be peace?
I need another world
This one's nearly gone».

maio 16, 2009

Cinema enjoativo

O cinema, como tudo, tem as suas modas. Algumas, alastram como vírus gripais, dando cabo da saúde a películas promissoras. Nos últimos anos, vários realizadores não resistiram e puseram-se, primeiro, a imitar as filmagens tremelicantes dos vídeos caseiros. Depois, trataram de começar a imitar-se uns aos outros, a ver quem dá mais encontrões à máquina durante as filmagens.

O primeiro filme que tive de parar de ver por estar a provocar enjoo, enjoo literal, físico, foi Os Idiotas, do Lars von Trier. Ao dinamarquês deu-lhe para pegar numa máquina digital fatela para se pôr a andar atrás dos actores como quem filma os filhos na praia com uma Sony de 400 euros. Idiota.

Depois, vieram outros, qual deles o mais parecido com as imagens de um repórter de guerra no meio de um raide de Israel na Faixa de Gaza. Nem o Woody Allen escapou ao vírus "Isto só vídeo"...

O caso mais recente foi um daqueles filmes que veio a menos de 2 euros com o Público. California Dreamin´ até prometia. Jovem realizador romeno. Enredo interessante. Prémios aqui e ali. Durou cinco minutos de visualização. O vírus voltou a atacar.

Que raio passará pela cabeça destes realizadores para nos oferecerem filmes aos encontrões? Que parecem filmados às três pancadas por uma mosca aos ziguezagues? Não perceberão o desconforto que isso provoca? Para já não falar da opção estética, algo duvidosa. O cinema é arte da imagem em movimento. Mas conviria não exagerar.

Bom, mais vale voltar ao regaço familiar e confortável de um Fellini, de um Kurosawa, de um Kieslowski ou de um Tarkovski. Para desenjoar dos abanões de certas modas.

maio 08, 2009

De leituras recentes

«É evidente que não há nenhum proveito em escarnecer deliberadamente da opinião pública; é ainda estar sob o seu domínio, embora num sentido inverso. Mas ser-lhe francamente indiferente é não só uma força mas uma causa de felicidade. E uma sociedade composta de homens e mulheres que não se verguem demasiado às convenções é muito mais interessante do que uma sociedade em que toda a gente proceda da mesma maneira.»

Bertrand Russel, A Conquista da Felicidade


«Ninguém nos dá ordens morais nem nos impõe obrigações: supor que o dever é o núcleo central do propósito ético é contemplar com olhos de escravo ou pelo menos de funcionário a tarefa da liberdade.»

Fernando Savater, O Meu Dicionário Filosófico


«Continua a ensinar, porque o ensino lhe proporciona uma forma de vida; também porque o ensina a ser humilde, porque o faz compreender quem ele é neste mundo. Compreende a ironia: aquele que vem ensinar aprende a mais interessante das lições, ao passo que aqueles que vêm para aprender não aprendem nada.»

J. M. Coetzee, Desgraça