dezembro 29, 2003

O tenor de Cedofeita

O homem tem o porte típico de um tenor operático. Canta com a voz grave, colocada. Ouve-se bem que foi treinada, algures, numa daquelas exigentes escolas do leste europeu. A seu lado tem um pequeno gravador a pilhas, que vai debitando uma roufenha banda sonora de acompanhamento. Estamos na Rua de Cedofeita, no Porto, cheia de gente apressada, ao ritmo (ainda) das compras pós-natalícias.


Que desperdício! Aquela bela voz, ali, a cantar para toda a gente e para ninguém, à espera que a moeda da condescendência tilinte por entre o frio que se faz sentir. Quanta gente haverá por aí assim, vinda aos magotes do leste, cheia de talento, sem ter onde cair?


Dá que pensar, esta do tenor de Cedofeita. Hoje, qualquer pirilampo com jeito para grunhir imitações baratas da voz de Celine Dion ou de Eros Ramazzotti acaba na TV ao lado da Catarina Furtado a dizer baboseiras ranhosas, de preferência na presença babada dos papás. Dali a nada, por dá cá aquela palha, estão os pirilampos a sair com um CD. Há uns anos, não tantos quanto isso, chegar-se à edição de um disco era quase tão fácil quanto escalar o Evereste.


Ora, com poucas excepções, esta gente produzida a martelo instantâneo pela fábrica de vedetas que é a televisão, é gente com arame farpado no sítio das cordas vocais. Um crime, portanto.


O mundo às avessas, para não variar. Há um miúdo que costuma cantar, com uma guitarra acústica vergastada pelo uso, sentado na soleira de portas da Rua de Santa Catarina, no Porto. Canta o que está a dar (Nirvana, Pearl Jam e quejandos), mas canta convincentemente, tal como o tenor de Cedofeita.


Se vozes consagradas pelos tops, como Pedro Abrunhosa, Rui Reininho ou mesmo Rui Veloso, ouvissem o tenor de Cedofeita ou o punk tardio de Santa Catarina a darem corda aos pulmões, talvez pensassem duas vezes antes de voltar a abrir a boca para um microfone.


É um mundo injusto? É.