março 31, 2005

Choque cívico

Sócrates quer dar um choque tecnológico na nação de forma a catapultá-la para o futuro da globalização e da competitividade. Tudo bem. O problema é que o país precisava, antes, de um verdadeiro choque cívico e cultural.

Este país, que quer imitar o "milagre económico" finlandês ou irlandês e integrar o "pelotão da frente" da Europa, é o mesmo da estagnação generalizada da civilidade.

Pejado de novos-ricos, chicos-espertos de toda a espécie e de aves de rapina multicolores, é, também e ainda, o país que se mata alegremente na estrada todos os dias, que condena mulheres em tribunal pela prática de aborto, que tem na fuga ao fisco motivo de orgulho patriótico, que cospe para o chão e urina contra as paredes, que faz dos passeios das cidades cinzeiro, caixote de lixo e cocódromo dos cachorros de trela, que fuma dentro de hospitais, locais de trabalho e restaurantes, que destrói impunemente a paisagem a doses cavalares de betão e que suja rios e ribeiros com toda a espécie de porcaria que possa lá despejar.

Ainda ninguém conseguiu enfiar na cabeça de muito bom português que, fora de casa deles, o espaço é de todos. Não é o espaço dos "outros" ou de "ninguém". É nosso. Colectivo. Deve ser respeitado e, se não for pedir muito, bem tratado.

A falta de cultura cívica do português, tema meio tabu, em que ninguém parece interessado em tocar, é transversal: ataca todos os estratos sociais. Os reflexos mentais são curtos, imediatos: "isto não é meu, que se lixe!" Toca a sujar, a conspurcar, a destruir, a maltratar, a enganar, a poluir. E quem não estiver bem, que se ponha melhor.

O choque nisto tudo era bem mais urgente. Só que é infinitamente mais difícil que o choque tecnológico. E, afinal, Portugal já tem tantos problemas para resolver...

março 28, 2005

Infopropaganda

Que Bush pague a comentadores para que façam propaganda do governo e que o mesmo Bush ache natural que as televisões locais do seu país exibam "peças de estilo noticioso" produzidas, à custa de dinheiros públicos, por departamentos governamentais, não é propriamente grande novidade, dado o débil calibre intelectual da figura em causa.

O que é chocante nesta história é as televisões colocarem no ar as tais "peças noticiosas" sem informarem os telespectadores de que foram produzidas pelo governo. Os canais funcionam assim como uma espécie de rameiras enganadoras. E aqui, sim, reside a principal fonte de preocupação.

É que, um pouco por todo o lado, a comunicação social aparece cada vez mais vergada a diversos tipos de poderes, com destaque para o político e o económico, cujos interesses se cruzam sistematicamente. A celebrada autonomia do campo jornalístico vai sucumbindo, paulatinamente, às mãos da influência e do dinheiro. Talvez por isso o jornalismo de investigação esteja em vias de extinção. É demasiado caro e incómodo para os poderes instalados.


março 25, 2005

'Stress' de guerra

Vamos lá ver: se eu trabalhasse, como jornalista, no JN, no DN, na Grande Reportagem ou na TSF e me dissessem que o meu futuro patrão foi dono de um bar de "strip tease" no Porto e é grande amigo de Pinto da Costa, também eu era capaz de ficar um bocadito preocupado...


A ler:
Órgãos da Lusomundo Media pedem garantias à Controlinveste


março 24, 2005

Já não se pode morrer em paz

O princípio da notícia: «O 11º círculo do Tribunal de Recursos dos Estados Unidos, em Atlanta, rejeitou ontem um pedido para repor o tubo de alimentação que há mais de 15 anos mantém viva Terri Schiavo, uma mulher de 41 anos em estado vegetativo desde 1990.» (in Público)

O fim da notícia: «Vários grupos religiosos, associações conservadoras e legisladores republicanos estão a movimentar-se no sentido de forçar o Senado Estadual da Florida a aprovar uma lei que force a reinserção do tubo digestivo que alimenta a paciente.» (ibid.)

Esta pia gente religiosa, conservadora, republicana, tão lesta a defender a vida quanto a assinar condenações à morte, precisava mesmo era de sacudir a água benta e ir ver o filme de Clint Eastwood, por sinal, um realizador republicano. Em Million Dollar Baby veriam o quanto custa lutar para entrar na vida e ter de lutar de novo para poder sair dela. Com dignidade.

março 23, 2005

Moral paradoxal

O presidente dos EUA e muita da direita religiosa daquele país são moralmente pró-vida: contra o aborto, contra a eutanásia e... contra o fim da pena de morte.

março 22, 2005

Xutos e pontapés no Porto

O número de asneiras urbanísticas e arquitectónicas que o Porto tem feito nos últimos anos já ultrapassa certamente o cocuruto da Torre dos Clérigos. Vão do desastre de algumas obras da Porto 2001, como é o caso do Jardim da Cordoaria e da caixa de sapatos envidraçada que Nuno Cardoso implantou em frente ao mar e que hoje parece um edifício de Sarajevo, até ao recentíssimo triste caso da Casa da Música.

Pois esta promissora e problemática obra do arquitecto Koolhas vai mesmo, confirmando todas as piores expectativas, algo em que a Invicta se especializou, levar com um mamarracho de sete andares nas suas traseiras, sede de um banco todo envidraçado. Problemas de terrenos, contrapartidas para aqui, ameaças de pedidos de indemnização para acolá, a Câmara tesa que nem um virote, tudo se conjugou primorosamente para chegarmos a mais uma aberração e a um atentado, antes de mais nada, a um mínimo de bom senso.

Do alto da Casa da Música era suposto ter-se vistas para o mar. Mas não. Vamos antes poder contemplar as paredes espelhadas de um dos negócios mais lucrativos do país. E não é de música que estamos a falar.

Uma casa como a da Música merecia uma envolvente adequada que não a sede do BPN. E das duas uma: ou se construía a casa onde está hoje acautelando, logo à partida, situações absurdas como a que agora foi aprovada pela Câmara ou tinha-se escolhido outro local para a construção.

Assim, já em Abril, vamos poder ouvir música com trolhas a acompanhar, pois as obras do banco começam no mês da inauguração da Casa da Música.

Está na altura de os portuenses serem mais exigentes com os seus autarcas, que cultivam um gosto algo perverso pela apresentação de factos consumados ou irreversíveis. O espaço público (nosso, portanto) da cidade é constantemente violado por decisões de políticos impreparados, quando não completamente incultos, e por arquitectos meio egocêntricos, quando não autistas. Os arquitectos não são vacas sagradas. Eles passam, a cidade fica. Por vezes, muito mal tratada por eles. Como salta à vista.

março 20, 2005

As novas melgas

Chamam-lhes agora "televisões corporativas". A expressão tem, por si só, ressonâncias perturbadoras, pois remete-nos para o universo das grandes corporations multinacionais, doidas por lucro, sem rosto, ética ou escrúpulos. Pois as tais "televisões corporativas" estão, pelo que nos diz o Público de hoje, a conquistar o espaço público urbano a bom ritmo. Bom, como quem diz...

Há algum tempo, cheguei aqui a falar na "televisação total" do espaço público. O trabalho do Público mostra que a coisa avançou e está a atingir níveis próprios de uma pandemia. Ecrãs de televisão mostrando publicidade e conteúdos diversos, incluindo notícias, esperam-nos a cada esquina: nas ruas, nos tranportes públicos, nos centros comerciais, estádios de futebol, gasolineiras, cinemas, livrarias, restaurantes. Ainda não se lembraram das igrejas, mas... Onde quer que esteja um pacato cidadão susceptível de ser recrutado para a carreira de público-alvo, estará cada vez mais um ecrã.

Ler no metro sem ser assaltado pelo som de "spots" publicitários, conversar em voz baixa enquanto se saboreia um arroz de tamboril num restaurante ou simplesmente passear na rua sem ter que, a cada passo, levar com uma cena de apanhados ou com um anúncio bombástico são hábitos prestes a passar à clandestinidade.

Um dos responsáveis por este novo polvo pubicitário explica que a ideia é "apanhar" (o termo é dele), por exemplo, os jovens que não vêem televisão em casa. Portanto, "apanha-se" a rapaziada no metro de forma a impingir-lhes o novo telelé da Nokia ou uma ligação ultrasónica à Net.

Estes ecrãs são verdadeiros pontos de fuga intrusivos. Sugam o olhar, onde quer que ele esteja, e impingem-lhe a imagem. Não distraem: cortam a distracção, interrompem o devaneio, a simples conversação. São um ruído de fundo incómodo. Uma chatice.

A publicidade é um cão que não nos larga.


A ler:
Ecrãs de televisão invadem espaços públicos das cidades

março 05, 2005

Gente crescida

Comparado com aquele intragável bando de patos que constituía o desgoverno de Santana Lopes, o governo de Sócrates é do outro mundo. Civilizado, entenda-se... E Freitas do Amaral é ali uma requintadíssima e absolutamente deliciosa provocação aos novos-beatos do PP.

março 02, 2005

Jarrett em Colónia


Se há discos eternos, The Koln Concert é, seguramente, um deles.