julho 07, 2004

Intelectuais da bola

Agora que a febre altíssima do futebol diminuiu com o fim do Euro 2004, pode falar-se um pouco mais friamente de futebol. Talvez fosse boa altura para se olhar um pouco para trás e olhar com olhos de ver os disparates monumentais que foram escritos e ditos na comunicação social à custa da paixão exacerbada, cega, pelo mundo da bola.

O exercício deveria começar pela revisão do que foi escrito por alguns intelectuais da praça pública, alguns deles rendidos totalmente à glória da 'inteligência do movimento' dos jogadores, à 'filosofia de jogo' dos treinadores, ao 'êxtase orgásmico' do golo de Nuno Gomes. Mamma mia!

Para retemperar-lhes os ânimos, sempre muito pouco racionais, há um belíssimo texto a ler: 'Os heróis mitificados do Olimpismo'. Foi publicado no Monde Diplomatique de Junho e é assinado por um professor de sociologia, outro de ciências da informação e outro ainda de ciências e técnicas desportivas.

A fortíssima pedrada de Jean-Marie Brohm, Marc Perelman e Patrick Vassort no charco do desporto, em particular do futebol, reza, por exemplo, assim:

«A tal ponto que o desporto se exerce a partir de agora no mesmo registo das necessidades básicas - beber, comer ou dormir - e tornou-se o espaço-tempo quase exclusivo dessas multidões solitárias embrutecidas pela paixão do que não é essencial: um golo, um sprint, um ás. O desporto invadiu a vida quotidiana e para muitos indivíduos não há mais nada fora dele, a não ser o vazio abissal do jargão, televisionado, da inautenticidade.»

«A contaminação generalizada das consciências provém assim deste incessante matraquear desportivo-televisivo. Este, por intermédio das imagens infinitas impostas pelas tecnologias digitais que colocam cada indivíduo diante dos ecrãs (telefone portátil, home cinema, televisor, etc., celebra não apenas os novos ícones do desporto, mas destila de forma maciça a visão desportiva do mundo.»

«A ideologia da "neutralidade axiológica" nega violentamente o papel do desporto enquanto meio de embrutecimento, doutrinação e cloroformização das massas.»

E a cereja no bolo:

«Chega a ser confrangedor assistir ao modo como alguns intelectuais, geralmente mais críticos, se juntam à matilha dos fanáticos do músculo, incapazes de trazer à superfície as funções políticas reaccionárias desta desportivização dos espíritos, deste matraquear emocional falso em torno dos "nossos" campeões.»