novembro 20, 2003

Nietzsche: Eis o homem

O eterno retorno aos escritos de Nietzsche é sempre um imenso prazer. Ecce Homo é de verbo fortíssimo, na primeira pessoa. O filósofo convida-nos - ou antes, desafia-nos, em tom por vezes altivo e provocador - a acompanhar o seu poderoso e, para altura, meados do século XIX, radical labirinto de ideias. Logo no prefácio, não deixa dúvidas quanto à sua individualidade, vincada e de ruptura: «Escutai-me! Pois, sou assim e assado. Sobretudo, não me confundam com outro.» Em tom autobiográfico, o pensador não deixa pedra sobre pedra nas suas críticas, sobretudo quando ataca o «espírito alemão» e os alemães em geral e a moral cristã («O cristianismo, a religião transformada em negação da vontade de viver!»).

Mas nem só da complexidade de referências à «transmutação de todos os valores» respira Ecce Homo. Nietzsche discorre também sobre aspectos muito pessoais: a sua doença, as viagens a Itália, as paisagens, a importância de amigos como Wagner ou Lou Andreas-Salomé na sua vida, a música, a poesia. Este livro, onde o autor passa em revista os 'bastidores' da produção de obras suas, como O Crepúsculo dos Ídolos, Assim falou Zaratustra, A Gaia Ciência ou Para além do Bem e do Mal, entre outras, talvez seja o melhor ponto de partida para se entrar no seu mundo peculiar. Sempre tendo em conta que os seus escritos nem sempre são de fácil digestão.

Independentemente de se concordar ou não com ele, há no mínimo que reconhecer-lhe a enorme coragem, a frontalidade total, no afrontar de dogmas enraizados de modo muito profundo na sociedade de então. Só mesmo quem de si próprio diz «Não sou um homem, sou dinamite!» pode aguentar as altas pressões de uma solidão de génio.