agosto 30, 2004

Boas notícias

O Público de ontem trazia três boas notícias naquelas páginas leves de Verão:

Primeira: vai ser lançado um DVD com uma colecção de filmes de Michael Moore (bendito efeito Fahrenheit! Tomá lá Disney!)

Segunda: A série Seinfeld, a tal brilhante série sobre nada e coisa alguma, vai voltar ao pequeno ecrã, repescada pela SIC Radical.

Terceira: um conjunto de cientistas internacionais, entrevistados pelo jornal britânico The Guardian, elegeu Blade Runner o melhor filme de ficção científica da história do cinema. É difícil não concordar com eles. A obra de Ridley Scott, baseada num livro de Philip K. Dick, é toda ela deslumbrante. Tem uma atmosfera futurista muitíssimo própria, densa e cativante, é muito bem filmado e narrado, tem um desempenho fantástico de Harrison Ford, uma banda sonora histórica de Vangelis. Além disso, é um filme tão inteligente quanto convincente nas questões que coloca. É também o meu filme de ficção científica de referência. Talvez esta seja uma boa altura (e desculpa) para revê-lo pela quinta vez.

agosto 27, 2004

Um murro no estômago

Fahrenheit 9/11 não é um documentário, não é um filme, nem sequer é um panfleto de desinformação, como muitos pretendem: é um manifesto apaixonado anti-Bush, uma violenta diatribe contra a guerra do Iraque, um libelo contra o actual sistema político dos EUA. Enquanto manifesto em forma de imagens, necessariamente subjectivo, é brilhante e eficaz.

Se tivesse de fazer um 'filme', qualquer cidadão do mundo com gosto pelas imagens em movimento e com asco pelo perfil sinistro dos neoconservadores sentados hoje na Casa Branca faria uma coisa parecida com a obra de Michael Moore. Fahrenheit é apaixonado, visceral, impiedoso, feito de raiva. Por isso faz tanta espécie a intelectuais de estirpe vária e, em particular, a conservadores de sacristia.

Fahrenheit é um murro no estômago. Expõe, por vezes com algum humor, mentiras, hipocrisias, negociatas e histórias mal contadas, quase todas com origem na Casa Branca. Coincidências? Oxalá este 'filme' contribua para arejar a cabeça de muita da populaça americana, mantida meio sonâmbula à custa de uma televisão estúpida, dócil e patriótica, e afogada numa vida de trabalho, competição e consumo alienantes.

O grande drama da América, como aliás de muitas democracias ocidentais, é que o povo não faz a mínima ideia (e muitas vezes está-se maribando) do que os seus governantes andam a fazer. A própria oposição, isto é, os democratas, também andam por lá meio perdidos nos corredores do poder. São todos uns grandes patriotas, cheios de bandeirinhas nas janelas.

Fahrenheit é o relato das aventuras de um bandido do petróleo, George W. Bush, e das suas cumplicidades com os bin Laden e outros muchachos pouco recomendáveis. Mas, mais que nos ajudar a ficar com uma ideia abaixo de cão do «homem mais poderoso do planeta», o manifesto de Moore contribui para aumentar em nós a sensação de que os EUA são, nesta fase da sua história, um caso perdido.

agosto 19, 2004

Brincar aos jornais

O Diário de Notícias continua a pregar pregos no seu próprio caixão. Desde que foi, há quase um ano, vítima de um golpe de estado 'laranja', o percurso do velho diário não era difícil de prever. A estória que hoje vem relatada nalguns jornais, sobre a decisão da Direcção editorial de retirar de página uma notícia incómoda para o governo, tem o mérito de ser absolutamente previsível.

O actual director não foi posto por acaso, e contra tudo o que um mínimo de bom senso recomendaria, à frente do jornal. O ex-assessor de Cavaco e de Martins da Cruz foi posto lá para rentabilizar o seu capital de experiência acumulada. Na assessoria, evidentemente. O custo de credibilidade, como se sabe, foi, e continua a ser, muito elevado para o jornal. As vendas aí estão para o demonstrar. Nenhum jornal do mundo que se queira de referência pode cometer um erro tão básico e grosseiro como este.

Enfim, a história não ensina nada a esta gente, que se entretém a domesticar jornais como quem brinca às casinhas, marimbando-se por completo para a função social que o jornalismo deve ter. O problema é que, democraticamente falando, é uma brincadeira muito séria, pois o país precisa como pão para a boca de jornais sólidos e credíveis, sobretudo agora que as televisões destrambelharam por completo. Precisa de um DN e um Público fortes, a competir pela excelência, e não pelas migalhas de S. Bento.

Neste episódio da notícia 'impublicável', nem tudo é mau. Graça Henriques, editora-adjunta do Nacional, percebeu que houve cedência a pressões políticas e demitiu-se. Fez muitíssimo bem. A maior parte dos jornalistas da secção pôs-se ao lado dela. O seu editor pôs-se ao lado da Direcção. Pois...

agosto 18, 2004

De leituras: apertos na Internet

«A Internet é, de ano para ano, cada vez menos livre. Cada vez há mais vigilância encoberta. Mais dados pessoais são coligidos. Mais fusões têm lugar, limitando escolhas de acesso, tanto a consumidores como a negócios. Se tens um web site pessoal e colocas nele alguma espécie de material proibido, a tua empresa hospedeira pode apagá-lo, ou mesmo fechar a tua conta, por ordem de uma autoridade governamental. Isto dificilmente é liberdade.» Mindy McAdams, Online Journalism Review.

agosto 17, 2004

O fundo do jornalismo

Vital Moreira, na sua coluna de hoje, no Público, a propósito de mais uma trapalhada lusitana, acerta em cheio:

«A gravação de conversas mantidas por um jornalista sem informar os interlocutores do registo não é somente um crime punido pelo Código Penal, mas também uma infracção deontológica grave. Que agora se saiba que se trata de uma prática longe de ser rara só torna o episódio mais inquietante. A questão vem recolocar em causa a falta de instrumentos de responsabilização e de punição dos ilícitos disciplinares dos jornalistas. O actual estado de impunidade só pode ser fonte dos piores abusos. O ilícito criminal não pode suprir a ausência de mecanismos de autodisciplina profissional. »

Nesta questão, Vital está, infelizmente, cheíssimo de razão. O jornalismo chegou a um estado de pura roda livre, onde quem fala mais alto é o mercado e os fretes políticos e pessoais. Código Deontológico é letra moribunda, quando não morta e assassinada, em muitas redacções. O Sindicato e a sua Comissão da Carteira, nesta matéria, limitam-se, há muitos anos, a ver os navios passar. A impunidade é garantida e quase total.

E não há, de facto, grandes mecanismos, quer internos, quer externos, às redacções que assegurem uma efectiva responsabilização dos jornalistas em caso de atropelo a regras básicas da profissão. Há uma coisa nebulosa a que alguns académicos chamam 'cultura de redacção' que ainda vai travando alguns excessos, sobretudo em redacções onde a noção de profissionalismo é levada mais a sério.

Nunca os jornalistas quiseram nada, nem Ordem, nem outra coisa qualquer, que lhes cheirasse a algum tipo de controlo. A polémica, há alguns anos, sobre a eventual criação da Ordem dos Jornalistas foi esmagada com o papão do regresso da censura. Bastava, diziam os detractores da mudança, a magia da auto-regulação. Passado uns bons anos, veja-se em que deu esta entrega aos próprios jornalistas da sua própria regulação...

A questão é esta: pode uma profissão (alguns acham que o jornalismo é apenas uma ocupação...) com impacto sobremaneira relevante na vida pública e na esfera privada viver sem regulação efectiva? Pode o jornalismo ser entendido como uma profissão onde vale tudo o que cada redacção deixar a cada momento? Sabendo-se, como se sabe hoje, que as leis selvagens da concorrência deixam o jornalismo de pantanas e colocam muitos jornalistas a fazerem de artistas de circo, vai continuar a acreditar-se no mercado para regular o 'espectáculo'?

É do interesse dos próprios jornalistas encararem estas graves questões de frente antes que alguém faça isso por eles. Mas, se o costume se mantiver, vamos continuar a vê-los caladinhos à espera que a má onda passe.

Sem responsabilização, sem mecanismos de punição para prevaricadores, sem travão para impunidades obscenas, a manter-se a lei da selva, o jornalismo tem o caminho certo em direcção ao fundo.