agosto 17, 2004

O fundo do jornalismo

Vital Moreira, na sua coluna de hoje, no Público, a propósito de mais uma trapalhada lusitana, acerta em cheio:

«A gravação de conversas mantidas por um jornalista sem informar os interlocutores do registo não é somente um crime punido pelo Código Penal, mas também uma infracção deontológica grave. Que agora se saiba que se trata de uma prática longe de ser rara só torna o episódio mais inquietante. A questão vem recolocar em causa a falta de instrumentos de responsabilização e de punição dos ilícitos disciplinares dos jornalistas. O actual estado de impunidade só pode ser fonte dos piores abusos. O ilícito criminal não pode suprir a ausência de mecanismos de autodisciplina profissional. »

Nesta questão, Vital está, infelizmente, cheíssimo de razão. O jornalismo chegou a um estado de pura roda livre, onde quem fala mais alto é o mercado e os fretes políticos e pessoais. Código Deontológico é letra moribunda, quando não morta e assassinada, em muitas redacções. O Sindicato e a sua Comissão da Carteira, nesta matéria, limitam-se, há muitos anos, a ver os navios passar. A impunidade é garantida e quase total.

E não há, de facto, grandes mecanismos, quer internos, quer externos, às redacções que assegurem uma efectiva responsabilização dos jornalistas em caso de atropelo a regras básicas da profissão. Há uma coisa nebulosa a que alguns académicos chamam 'cultura de redacção' que ainda vai travando alguns excessos, sobretudo em redacções onde a noção de profissionalismo é levada mais a sério.

Nunca os jornalistas quiseram nada, nem Ordem, nem outra coisa qualquer, que lhes cheirasse a algum tipo de controlo. A polémica, há alguns anos, sobre a eventual criação da Ordem dos Jornalistas foi esmagada com o papão do regresso da censura. Bastava, diziam os detractores da mudança, a magia da auto-regulação. Passado uns bons anos, veja-se em que deu esta entrega aos próprios jornalistas da sua própria regulação...

A questão é esta: pode uma profissão (alguns acham que o jornalismo é apenas uma ocupação...) com impacto sobremaneira relevante na vida pública e na esfera privada viver sem regulação efectiva? Pode o jornalismo ser entendido como uma profissão onde vale tudo o que cada redacção deixar a cada momento? Sabendo-se, como se sabe hoje, que as leis selvagens da concorrência deixam o jornalismo de pantanas e colocam muitos jornalistas a fazerem de artistas de circo, vai continuar a acreditar-se no mercado para regular o 'espectáculo'?

É do interesse dos próprios jornalistas encararem estas graves questões de frente antes que alguém faça isso por eles. Mas, se o costume se mantiver, vamos continuar a vê-los caladinhos à espera que a má onda passe.

Sem responsabilização, sem mecanismos de punição para prevaricadores, sem travão para impunidades obscenas, a manter-se a lei da selva, o jornalismo tem o caminho certo em direcção ao fundo.